Londres – O manjado clichê “a culpa é da imprensa”, para imputar ao mensageiro o ônus das más notícias, define a situação da BBC na dupla crise que assola o Reino Unido, com monarquia e governo abalados por problemas de imagem ao mesmo tempo.
Sem assumir sua insatisfação com o noticiário, a administração de Boris Johnson avançou em uma ameaça antiga de cortar as verbas destinadas à emissora pública. Na semana passada, anunciou para 2027 o fim da taxa que cada residência deve pagar para assistir à BBC. E mais: até lá, a taxa deverá permanecer congelada.
Mas pode não ser tão simples quebrar a espinha da “Beeb”. Nesta quarta-feira (26/1) seu diretor-geral, Tim Davie, cobrou no Parlamento “um processo disciplinado para as mudanças, com envolvimento do público”.
Crise na BBC: no alvo do governo e sem defesa da monarquia
Falando em uma audiência da Comissão de Contas Públicas da Câmara dos Comuns, Davie desafiou diretamente a Secretária Nacional de Cultura, Nadine Dorries. Em pleno domingo (16/1), numa forma criticada de comunicar as decisões governamentais. ela anunciou via Twitter as novidades sobre a taxa,
Davie disse aos parlamentares que Dorries não tem o poder de revisar unilateralmente o orçamento da rede. “Acho que não cabe a apenas uma pessoa decidir o modelo de financiamento da BBC”, afirmou.
O que está em questão na crise da BBC não é apenas a taxa, mas a motivação do governo em mudar o atual sistema. Além de uma confusão entre a comunicação estatal e o jornalismo de serviço público praticado por uma emissora não-privada.
Quando a decisão foi revelada, houve a percepção nítida de uma vingança contra um noticiário fora do controle do governo, no momento em que Boris Johnson vê sua reputação despencar por causa do escândalo que, por causa das festas durante o lockdown, ficou conhecido como Partygate.
Nessa batalha, a BBC não deve contar com a monarquia entre seus defensores. Os membros da realeza também se sentem desconfortáveis com a cobertura de suas crises, como a do envolvimento do príncipe Andrew em processo de abuso sexual ou as entrevistas desafiadoras de Harry e Meghan.
A gota d’água foi um documentário exibido em novembro sobre a relação dos membros da chamada “Firma” com a mídia. Em represália, o tradicional programa de Natal da família real foi tirado da BBC e veiculado pela ITV.
Leia mais
Programa da BBC expõe relações da realeza britânica com a mídia e racismo contra Meghan
Taxa da BBC: agrado às massas, vingança ou as duas coisas?
A investida contra a BBC no momento de crise do governo abriu margem a duas interpretações: uma mera vingança ou uma forma de angariar apoio de parte da população, com um refresco em suas despesas de entretenimento.
E o melhor: sem risco de ser processado por não pagar a taxa, atitude que atualmente pode gerar multa e até prisão.
Dois dias antes de a decisão ser anunciada, a popularidade do primeiro-ministro Boris Johnson despencara ao seu pior nível devido ao Partygate.
Uma crise que só vem piorando com novas denúncias a cada dia. A mais recente foi a série de celebrações de aniversário do líder do governo. O pacote de medidas anunciado foi apelidado de “red meet”, em alusão ao ato de jogar carne às feras.
Leia também
Boris Johnson se desculpa com Elizabeth II por festa de assessor na véspera de velório de Philip
Fim da taxa da BBC em defesa dos lares castigados
O debate sobre o financiamento da “Auntie Beeb” é antigo. Muitos acham que a emissora deve disputar o mercado a fim de reduzir sua dependência da taxa – até porque os jovens da geração streaming pouco assistem à TV, o que deve fazer a fonte secar.
Entretanto, o momento do anúncio da decisão e o tom raivoso de Dorries no Parlamento dois dias depois alimentam a tese de vendetta contra o noticiário desfavorável.
A licença anual custa 159 libras e passaria para 167 libras. A diferença não quebraria nenhuma família, mas o seu congelamento representará £ 2 bilhões a menos no orçamento da rede em seis anos.
Ainda assim, a Secretária de Cultura vendeu a decisão como “uma defesa aos lares castigados com a inflação”. E atacou os opositores por ignorarem o povo − discurso mais populista impossível.
Ela chegou a provocar risos quando afirmou que o governo não quer destruir a BBC, embora na campanha política de 2019 Boris Johnson tenha declarado guerra à emissora e ameaçado justamente com o corte de verbas.
O debate da imparcialidade na crise da BBC
O curioso é que os dois lados do espectro político recriminam a corporação, por supostamente favorecer o grupo oposto. Nos debates acalorados em torno do Brexit, esse sentimento se intensificou.
Em sua fala no Parlamento, a Secretária de Cultura chegou a dizer que “a corporação precisa abordar questões em torno da imparcialidade e do pensamento em grupo”, indicando que o corte das verbas não é motivado apenas pela defesa do bolso do contribuinte.
A revisão da taxa poderia ser anunciada até abril. Antecipar a notícia para o momento em que a rede (assim como todas as concorrentes) cobre extensivamente o Partygate não parece uma mera coincidência.
Leia também
Análise | Crises simultâneas no Reino Unido ameaçam cargo do primeiro-ministro e futuro da monarquia
Tim Davie referiu-se a essa antecipação em seu depoimento. Ele disse ter sido pego de surpresa com a decisão, anunciada dias antes do esperado e sem conversas adicionais depois que os dados sobre a taxa tinham sido apresentados.
O motivo dessa antecipação e da surpresa manifestada pelo diretor da rede é mais uma indicativo da confusão entre jornalismo de serviço público e comunicação estatal.
A impressão que se tem é de que a administração de Boris Johnson gostaria que a BBC seguisse o modelo de estatais obedientes como a russa RT ou a chinesa CGTN, financiadas e subordinadas editorialmente ao Estado.
A BBC pode sair da crise?
É difícil imaginar que a BBC possa acabar.
Mas terá que mudar, talvez sacrificando produções pouco lucrativas, jornalismo local e sua elogiada cobertura internacional, que muitas vezes funciona como única mídia confiável em regimes autoritários. E este é o motivo da reação de muitos setores da sociedade.
O diretor da rede disse que a BBC “tem a mente aberta para o debate sobre modelos de financiamento”, mas argumentou que haveria riscos envolvidos na quebra de orçamento da forma proposta:
“A mídia de serviço público é uma das coisas pelas quais devemos lutar e devemos nos orgulhar no Reino Unido”, disse ele. “Se desmantelarmos isso, honestamente acho que estaremos prestando um desserviço, não apenas à nossa cultura e à nossa democracia, mas também à saúde econômica de nossa indústria criativa.”
Davie disse que “tudo está sobre a mesa” em termos de cortes orçamentários, já que a BBC terá que preencher um rombo de £ 1,4 bilhão no financiamento.
Ele disse que não poderia se comprometer a continuar transmitindo 31 “programas premium” por ano e também não descartou a possibilidade de exibir mais reprises fora do horário nobre.
Os parlamentares questionaram os efeitos do corte sobre o BBC World Service, que é transmitido em outros idiomas e representa um forte elemento do soft power britânico. O diretor disse que decisões seriam anunciadas em breve.
Os altos salários da BBC
Davie argumentou que o corte dos salários de estrelas, que é uma das críticas tanto de apoiadores do governo como de adversários, não proporcionaria grandes economias. Ele disse que um corte poderia comprometer a posição da BBC com o público, aumentando a crise e fazendo a emissora perder audiência.
O principal alvo das críticas é Gary Lineker, ex-jogador de futebol e atual comentarista e âncora. Ele fatura mais de £ 1 milhão por ano. Aceitou reduzir o salário, mas ainda assim é vidraça no debate sobre os altos salários.
“Estamos tentando reduzir esses salários para os valores apropriados com várias negociações, mas estamos em um mercado inflacionado e os talentos entregam um valor extraordinário”, disse ele. “Claro, temos que economizar dinheiro. Continuaremos a fazer isso diariamente. Mas acho que precisamos investir em pessoas talentosas.”
O diretor-geral disse que a BBC paga a estrelas e executivos consideravelmente menos do que os rivais, e que isso estava dificultando que a corporação competisse pelos melhores talentos.
Uma das sensibilidades no debate é que a evasão de pagamento da taxa à BBC é considerada crime no país, objeto de reprovação de muitos parlamentares, pressionados por seus eleitores.
Na sessão parlamentar, a corporação confirmou que os processos aumentariam este ano devido à pandemia, podendo chegar aos níveis de 2019, quando mais de 122 mil ações foram movidas.
No ano em que Elizabeth II celebra o 70º aniversário de seu reinado com cada vez mais questionamentos à monarquia, um fantasma parecido assombra a BBC.
O preço do compromisso com o bom jornalismo pode acabar sendo o “encolhimento” de um reinado da emissora que completa 100 anos em 2022, ao longo dos quais superou crises e uma guerra mundial, mas que periga de ser enfraquecida em uma era de intolerância e polarização.
Leia também
Atropelamento de repórter ao vivo nos EUA gera críticas sobre condições de trabalho em jornalismo
Como a crise de Boris Johnson está se refletindo na imprensa, nas pesquisas e nas redes sociais