Londres – Um cidadão britânico de origem paquistanesa que em 2021 foi contratado para matar o blogueiro paquistanês Ahmad Waqass Goraya, exilado na Holanda devido a ameaças em seu país, foi considerado culpado pela justiça britânica e pode pegar prisão perpétua, em um caso considerado marco para reverter a impunidade de perseguição a jornalistas no exterior. 

O julgamento de Muhammad Gohir Khan, de 31 anos, terminou no dia 28 de janeiro. Ele retornará ao tribunal de Kingston-Upon-Thames em 11 de março para conhecer a sentença. 

A representante da organização Repórteres Sem Fronteiras no Reino Unido, Rebecca Vincent, acompanhou as audiências e comemorou o resultado: “é hora de acabar com a impunidade para ameaças tão atrozes”.

Jornalista sofreu perseguição fora do país 

A sentença é um fato raro em um universo de crimes e casos de perseguição a jornalistas cujos autores não são identificados pelas autoridades policiais ou nunca chegam a ser julgados.

Em alguns casos há evidências de envolvimento de governos incomodados com críticas feitas a partir de outros países. 

Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), nos últimos dez anos os responsáveis por cerca de oito a cada dez assassinatos de jornalistas no mundo não receberam qualquer  punição.

Nesse caso, porém, o fato de o acusado ser um cidadão britânico atuando em outro país europeu pode ter ajudado a mudar o padrão.

O jornalista Ahmad Waqass Goraya tem um histórico de sofrer assédio. Em seu blog ele escreve sobre violações de direitos humanos e casos de tortura por parte dos militares paquistaneses. Ele também apoia a revogação das leis de blasfêmia.

Em 2017, foi sequestrado e torturado no Paquistão, em uma operação simultânea que atingiu ao mesmo tempo cinco profissionais de mídia críticos do governo.

Na época do sequestro, a Human Rights Watch, legisladores da oposição e ativistas disseram que os sequestros quase simultâneos apontavam para o envolvimento do governo em um país com histórico de desaparecimentos forçados.

Goraya também declarou que os ataques “se encaixavam no modus operandi das agências de espionagem paquistanesas”.

Mas o julgamento de Muhammad Khan em Londres não estabeleceu ligações com o governo do país, pois o homem acusado de tê-lo contratado não foi identificado. 

Perseguição continuou na Holanda 

Mesmo depois do refúgio na Holanda, as agressões ao jornalista paquistanês continuaram. 

Em 2018, o blogueiro foi informado pelo FBI que seu nome figurava  em várias “listas de morte”. Em 2020, ele foi agredido diante de sua casa, em Roterdã.

Ahmad Waqass Goraya / reprodução Twitter

Goraya continua vivendo na Holanda, mas está escondido sob proteção do governo do país que o abrigou quando deixou o Paquistão. 

Morte de jornalista renderia R$ 718 mil  ao assassino 

A defesa de Muhammad Gohir Khan, que havia sido contratado por um intermediário conhecido como “Muzzamil”, aparentemente baseado no Paquistão e que poderia ser um cidadão britânico, refutou as alegações de que ele realmente pretendia matar Goraya. 

Os advogados argumentaram que o acusado havia planejado apenas receber dinheiro do contratante, fingindo que realizaria o assassinato, embora diversas evidências apontem para uma perseguição real ao blogueiro. 

Khan criou várias identidades falsas para dar a aparência de uma equipe maior, recebendo antecipadamente  £ 5 mil (R$ 36 mil)  para cobrir despesas operacionais. 

O acusado receberia ao todo £ 100 mil (R$ 718 mil) para colocar fim à vida de Goraya.

Segundo as evidências apresentadas na Corte, caso a tarefa fosse concluída o contratante ofereceria outros trabalhos semelhantes, sem indicação de que pudessem ser contra jornalistas. 

Khan viajou para Roterdã em junho de 2021, onde Goraya morava na época. Imagens de câmeras de segurança registraram a compra de uma faca e rondas para examinar a casa do blogueiro. 

A acusação apresentou ao tribunal vídeos da rua onde o alvo morava e mensagens trocadas entre Khan e “Muzzamil”, nas quais uma linguagem de pesca foi usada como código para o plano de assassinato. 

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Perseguição ao jornalista em endereço errado

Khan foi preso em junho de 2021 ao retornar de Roterdã para o Reino Unido de Roterdã.

O julgamento revelou uma série de trapalhadas, e também fragilidades das autoridades imigratórias da Holanda.

Ele contou no julgamento que chegou a sofrer um acidente de automóvel em Roterdã poucos minutos depois de alugar um carro, pois não estava acostumado a dirigir do lado direito da estrada.

Ao tentar contornar as restrições de viagem relacionadas à Covid para viajar para a Holanda que estavam em vigor em junho de 2021, pediu a um contato para fingir ser seu irmão morando lá.

Mas o funcionário da imigração desmascarou a farsa ao ligar para o homem, que não soube dizer quanto anos seu “irmão” teria. 

Ainda assim, ele conseguiu entrar no país em uma segunda tentativa e comprou uma faca. Porém, foi atrás do blogueiro em um endereço errado.

Sua captura foi possível graças a um outro oficial da fronteira holandesa, que desconfiou da declaração de que ele viajava a turismo quando retornava ao Reino Unido e o encaminhou para a polícia britânica. A investigação revelou as mensagens trocadas com Muzzamil.

Autoridades paquistanesas não responderam a pedidos de entrevistas da BBC e de outros veículos de imprensa sobre a perseguição ao jornalista e sobre o veredito da justiça do Reino Unido, embora em 2021 o país tenha aprovado uma lei de proteção a profissionais e imprensa. 

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“Muitas vezes os jornalistas exilados são forçados a viver com medo diante das ameaças com origem nos países dos quais escaparam. Estamos aliviados por Ahmad Waqass Goraya e sua família vendo que este plano foi frustrado, que eles estão seguros e que o homem que supostamente tentou assassiná-lo ficará preso” disse a Diretora de Campanhas Internacionais da RSF e Diretora do Bureau do Reino Unido, Rebecca Vincent.

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