MediaTalks em UOL

Calvário de Boris Johnson: novo assessor piora crise de imagem que deveria gerenciar

Guto Harri (perfil Wikipedia) e Boris Johnson (foto oficial Ben Shread / Cabinet Office)

Londres – O novo assessor de comunicação do primeiro-ministro Boris Johnson, contratado para controlar a crise que vem queimando sua imagem, acabou por colocar mais lenha na fogueira.

Ele começou no posto fazendo a última coisa que um profissional em seu cargo deve fazer: revelar conversas internas sensíveis em uma entrevista a um pequeno site de notícias. 

Guto Harri teve sua primeira reunião com Johnson na sexta-feira (4/2). Desde então virou o centro da crise de imagem do governo, no momento em que Johnson faz de tudo para se manter no cargo. 

Os assessores complicados de Boris Johnson 

De forma relaxada, como se estivesse com amigos em um pub, ele contou ao site Golwg360, do País de Gales, que o primeiro-ministro cantou a música “I Will Survive” quando foi perguntado se estava firme no cargo.

E ainda piorou a situação afirmando que o chefe não era “a pessoa negativa que muitos acham que seja” e “que não é tão palhaço”. 

As confusões em torno de Harri vão além das maledicências entre jornalistas. Elas dizem respeito à comunicação oficial do governo de uma das nações mais importantes do mundo, com influência global. 

Gestão equivocada de comunicação pode virar problema de Estado. E Johnson parece ter uma maldição com a escolha de assessores de comunicação e de imprensa. 

Três ocupantes anteriores do cargo criaram mais constrangimentos do que soluções. 

Uma foi Allegra Straton, estrela de um um vídeo ironizando as festas irregulares na sede do governo, que acabou vazando e irritando os britânicos obrigados a permanecer confinados.

Leia mais 

A crise de imagem de Boris Johnson e a falta que faz um bom assessor

Reprodução ITV

O mais recente, Jack Doyle, teve que sair na semana passada.

Ele deixou o cargo junto com quatro colegas, com a imagem arranhada por ter participado dos encontros de trabalho irrigados com muito vinho, o chamado Partygate. 

Outro assessor, James Slack, foi o anfitrião de uma festa de despedida na véspera do funeral do príncipe Philip. Ele foi trabalhar no jornal The Sun. 

Para completar a maldição, outra assessora, embora não oficialmente empregada pelo governo, também virou motivo de crise.

Carrie Johnson, a mulher do primeiro-ministro, que liderou a comunicação do Partido Conservador por muitos anos, mereceu uma biografia nada simpática, publicada esta semana. 

Ela é apontada como sendo uma “eminência parda”, interferindo em decisões do primeiro-ministro e na área de comunicação.

Novo assessor de Johnson começa falando em galês

Em sua entrada triunfal no cargo, Guto Harri começou a se relacionar com a imprensa de forma atípica para quem representa um governo que tem o inglês como seu principal idioma.

O primeiro movimento dele no novo emprego foi conceder uma entrevista exclusiva em galês ao pequeno site do País de Gales, a menor das quatro nações que formam o Reino Unido.

A ideia pode ter parecido simpática aos galeses, mas tem um significado político.

Reprodução

Há um movimento de independência no País de Gales. O resgate do idioma é uma das principais bandeiras dos separatistas que tiram o sono da monarquia e do governo.

Ao se mostrar “solidário” a esse movimento, o assessor de comunicação do primeiro-ministro do Reino Unido, que tem como missão conter esforços separatistas como esse e o da Escócia, parece ter esquecido a quem está representando.

O jornalista da BBC Elliw Gwawr, que fala galês, aproveitou para provocar: “Estou gostando que o lobby (grupo de jornalistas credenciados para a cobertura do governo)  em Westminster esteja totalmente perplexo que Guto Harri tenha feito uma entrevista em galês”.

A exclusiva do assessor do governo britânico

A escolha do veículo pequeno também foi recebida com estranheza.

Comentários sobre assuntos governamentais, dos quais a política de comunicação faz parte, costumam ser transmitidos por governos bem organizados em coletivas ou briefings, sem privilégios a determinados veículos. 

Mas pior do que a estratégia de divulgação foi o conteúdo.

Guto Harri, que tem 55 anos e já trabalhou na BBC e na TV conservadora GB News, fez graça com a forma como o primeiro-ministro o recebeu na sede do governo.

Revelou que o líder da nação entoou a estrofe “eu vou sobreviver” da famosa canção disco de Gloria Gaynor.

Seguindo a letra da música, Harri disse que respondeu “tenho toda a minha vida para viver”. E contou que Johnson teria arrematado com “tenho todo o meu amor para dar”. 

O site publicou as falas do entrevistado entre aspas.

Eu entrei e fiz uma saudação: ‘primeiro-ministro, Guto Harri se apresentando para o dever’. Ele se levantou para me saudar, mas disse ‘O que estou fazendo? Eu deveria me ajoelhar para você.”

“E nós dois rimos. Aí eu perguntei: ‘Você vai sobreviver ao Boris?’ Ele respondeu com sua voz profunda, começando a cantar enquanto terminava a frase e dizia ‘I Will Survive’.”

“Ele inevitavelmente me convidou a dizer ‘Você tem toda a sua vida para viver’ e ele respondeu: ‘Eu tenho todo o meu amor para dar’. E então tivemos uma pequena explosão de Gloria Gaynor!”

“Ninguém espera isso, mas foi o que aconteceu.”

“Houve muitas risadas e sentamos para ter uma conversa séria sobre como colocar o governo de volta nos trilhos e como avançar”.

“A atenção de todos está nos eventos recentes que causaram muita dor. Mas no final, isso não tem nada a ver com a forma como as pessoas votaram há dois anos.”

“Ele não é tão palhaço, mas é um personagem muito simpático.”

“Noventa por cento da nossa discussão foi muito séria, mas mostra que ele é um personagem que se diverte. Ele não é uma pessoa negativa como alguns o deturpam.”

A referência ao “take the knee” feita pelo primeiro-ministro deve-se ao episódio que levou Guto Harri a deixar a GB News.

Ele fez o gesto de se ajoelhar em sinal de repúdio ao racismo, um ato que a emissora conservadora não aceita. 

O assessor que virou notícia – e negativa 

É difícil imaginar que um profissional tão experiente não tenha imaginado que sua entrevista em galês a um pequeno site não fosse repercutir. 

Se ele não pensou nisso, esqueceu que a internet e as redes sociais existem.

Se pensou, não avaliou o quanto os comentários engraçados e “íntimos”, com palavras inadequadas para se referir a uma autoridade, seriam prejudiciais à reputação do assessor de Boris Johnson contratado para protegê-lo. 

A notícia foi compartilhada nas redes sociais e há dois dias não sai da pauta das TVs e dos jornais.  

Assessor não morria de amores pelo novo chefe 

Para complicar, não é a única controvérsia envolvendo o novo assessor.

Harri chefiou a comunicação de Boris Johnson em seu mandato como prefeito de Londres, um sucesso de relações públicas que o elevou ao círculo de políticos de expressão nacional. 

Contudo, em tempos recentes andou desencantado com o ex-chefe.  Ele nem fez questão de esconder isso, embora ao aceitar o cargo tenha tentado deixar o passado para trás.

Só esqueceu de combinar com os astutos jornalistas políticos que cobrem o governo, ávidos por desenterrar esqueletos. O jornal The Times teve o trabalho de preparar uma lista. 

Há quinze dias, falando sobre o ‘Partygate’, Harri disse ao podcast Newscast da BBC que, quando se trata de questões de integridade, é “difícil julgar e pessoas diferentes chegarão a conclusões diferentes”.

No início de janeiro, Harri apareceu no Newsnight na BBC2 descrevendo as festas durante a pandemia como “imperdoáveis”. Ele chegou a garantir que apareceriam novos fatos além dos relatados.

Dizendo que Johnson precisava oferecer um “pedido de desculpas rastejante – um pedido de desculpas realmente rastejante”, ele afirmou: 

“Acho que podemos assumir com segurança que houve muito mais encontros, porque parece ser um padrão. 

Alguém precisa colocá-los no contexto e explicar, sim, talvez eles sejam imperdoáveis, mas também são compreensíveis em alguns aspectos.”

Leia também 

‘Partygate’ faz Boris bater recorde de impopularidade, reprovado por 7 em cada 10 britânicos

Reprodução vídeo Downing Street 10

Em novembro de 2020 Harri publicou um artigo de opinião no The Daily Telegraph logo após a saída do ex-assessor principal do primeiro-ministro, Dominic Cummings. Ele atestou que “a estratégia de comunicação durante a Covid tem sido uma masterclass em incompetência”. E que Boris Johnson estava vendo “sua ampla igreja reduzida a uma seita”.

Mas há coisa ainda pior, lembrou o The Times. Em uma entrevista ao programa “The Week in Westminster”, da BBC Radio 4, em 2018, Harri disse: 

“Infelizmente, o primeiro-ministro está nos arrastando para um lugar onde pensamos que podemos brincar sobre coletes suicidas e que podemos ser sexualmente permissivos.”

Ele se referia  de forma nada sutil à fama de mulherengo de Boris Johnson. E foi além, dizendo que ele virou “uma figura extremamente divisiva”.

E quando o atual chefe deixou o cargo de secretário de Relações Exteriores, em julho de 2018, por discordar da condução que a então primeira-ministra Theresa May dava ao acordo de saída da União Europeia, Harri disse que o Brexit havia “destruído” Johnson, “porque ninguém acredita genuinamente que ele foi sincero”.

Leia também 

Como a crise de Boris Johnson está sendo tratada na imprensa, nas pesquisas e nas redes sociais

Reprodução Twitter

Por que Boris Johnson escolheu Harri como assessor? 

Guto Harri é um profissional que faz parte da ‘panelinha’ da cobertura política britânica. É reconhecido como tendo feito um bom trabalho com Johnson à frente da prefeitura de Londres. 

O então prefeito se projetou internacionalmente, chegando a emprestar seu nome para as bicicletas de aluguel espalhadas pela cidade, que ficaram conhecidas como “Boris bikes”. 

E brilhou à frente dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. 

O convite a alguém que andou falando publicamente mal dele pode ter uma explicação: a de que pouca gente quer aquele cargo, diante de uma crise sem precedentes, marcada por ações de comunicação equivocadas, como a de negar algo que depois viria a ser comprovado com imagens e testemunhas. 

Boris Johnson negou várias vezes que soubesse das festas ocorridas dentro da sede do governo e de que tivesse participado de alguma delas. Mas os fatos que vieram à tona o desmentiram.

Ele se desculpou, mas sem convencer muito. Numa dessas ocasiões, chegou a dizer que não tinha percebido que eram festas, achando que os encontros com vinho e música poderiam ser classificados como reuniões de trabalho. 

Guto Harri, um assessor com passado controverso 

Críticas ao atual assessorado não são o único telhado de vidro do novo assessor de Johnson. 

Guto Harri também está sendo criticado por laços com a empresa chinesa Huawei, acusada de utilizar equipamentos para espionagem em países com os quais a China mantém relação tensa, entre eles o Reino Unido. 

O jornal The Sun revelou que o jornalista fez lobby em nome da empresa chinesa quando trabalhava na agência Hawthorn Advisors,

Em 2020, a Huawei acabou sendo impedida de colaborar na infraestrutura 5G do Reino Unido devido a seus vínculos com o Partido Comunista Chinês.

O oposicionista Partido Trabalhista reagiu rápido. A vice-líder, Angela Rayer, disse na segunda-feira:

“Precisamos de total transparência de Guto Harri sobre todos os contatos que ele teve com o governo em seu antigo papel de lobista e quem eram seus clientes.”

Talvez o novo assessor de Boris Johnson precise ele próprio de um assessor para ajudar a contornar a repercussão negativa de seus primeiros dias no cargo – e assim ter mais tempo para cuidar de seu assessorado, que nunca precisou tanto de um eficiente consultor de comunicação.

Leia também

Como o Brasil e Bolsonaro apareceram em relatórios globais de liberdade de imprensa em 2021

Sair da versão mobile