Londres – Embora tenha tido sua emissora estatal Russia Television (RT) banida de vários países desde a invasão da Ucrânia, a Rússia não depende só dela para disseminar propaganda política e desinformação no Ocidente. 

Um estudo da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, constatou o que o espaço de comentários de leitores em sites de grandes jornais internacionais tornou-se alvo de “uma grande operação de influência destinada a manipular sistematicamente a mídia ocidental e espalhar propaganda e desinformação que apoie os interesses do Kremlin”.

O trabalho foi feito por integrantes do Instituto de Pesquisa sobre Crime e Segurança da universidade britânica. Eles encontraram evidências de que 32 meios de comunicação de grande audiência em 16 países – incluindo no Brasil – tornaram-se alvo dessa ação

Propaganda russa nos em grandes jornais 

Entre os veículos em que essa estratégia vem sendo utilizada estão Folha de S.Paulo no Brasil, The Daily Mail; Daily Express e The Times no Reino Unido; Fox News e Washington Post nos EUA; Le Figaro na França; Der Spiegel e Die Welt na Alemanha e La Stampa na Itália.

propaganda russa

Os pesquisadores identificaram 242 reportagens em que declarações provocativas pró-russas ou antiocidentais foram postadas em reação a reportagens sobre a Rússia. Dessa forma, eles influenciam os leitores dos sites alvo da operação. 

Além disso, os comentários são utilizados por meios de comunicação de língua russa como base para matérias sobre eventos politicamente controversos.

O mesmo conteúdo foi reproduzido por outros veículos classificados no estudo como “mídia marginal” e por sites com histórico de disseminação de desinformação e propaganda.  Alguns deles já foram vinculados pelos serviços de segurança ocidentais a agências de inteligência russas.

A operação de influência foi descoberta como parte da pesquisa sobre atividades on-line em meio a tensões entre a Ucrânia e a Rússia que se intensificaram em 2021. Mas os pesquisadores acreditam que o uso dessas táticas vem aumentando desde 2018.

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Operação de propaganda é “manipulação sofisticada” 

O diretor do Instituto de Pesquisa em Crime e Segurança, Martin Innes, que lidera o programa Open Source Communications Analytics Research da Universidade de Cardiff, disse:

“Esta campanha de influência é especialmente significativa devido à sua escala internacional e à sua manipulação sofisticada de uma ampla gama de meios de comunicação, sites e mídias sociais de maneira coordenada.

Ao ‘sequestrar’ as seções de comentários das organizações de mídia ocidentais, a Rússia conseguiu apresentar sua propaganda como indicativa da opinião dominante.”

Innes observou que os meios de comunicação ocidentais investigados são especialmente vulneráveis a esse tipo de manipulação, sem medidas de segurança em vigor para prevenir, dissuadir ou detectar esse tipo de atividade.

“Os trolls conseguiram alternar facilmente entre personas e identidades, algo que a tecnologia permite.”

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Padrões sugerem operação orquestrada

O programa do Instituto de Pesquisa de Crime e Segurança da Universidade de Cardiff é um projeto de pesquisa de longo prazo em larga escala projetado para entender melhor as causas e consequências da desinformação.

Para realizar a análise sobre o uso dos espaços de comentários, os pesquisadores empregaram técnicas de reconhecimento e detecção de padrões de ciência de dados para ler as postagens, identificando uma série de comportamentos incomuns associados a algumas contas exibindo conteúdo de propaganda russa.

Esses múltiplos sinais de falta de autenticidade e coordenação, embora individualmente relativamente “fracos”, quando juntos, sugerem que a atividade de comentários pode ser orquestrada, diz o trabalho. 

Algumas das plataformas de comentários permitem que outros usuários votem em postagens. Os comentários pró-Kremlin receberam repetidamente um número e proporção excepcionalmente altos de “votos positivos” quando comparados com mensagens típicas de usuários “normais”.

A análise comportamental detalhada dos perfis de conta que publicam comentários pró-Kremlin identifica que alguns desses usuários estão mudando repetidamente suas personas e locais.

Uma conta examinada teve 69 alterações de localização e 549 mudanças de nome desde a sua criação, em junho do ano passado. 

Mídia estatal russa é parte da ação de propaganda 

O relatório diz que também há evidências de coordenação entre a mídia estatal russa e os meios de comunicação ligados ao Patriot Media Group, que não é estatal, produzindo conteúdo baseado nos comentários desses leitores.

Artigos usando manchetes como “Leitores do Daily Mail dizem…” e “Leitores de Der Spiegel pensam…” foram publicados para sugerir que há um amplo apoio entre os cidadãos ocidentais à Rússia ou ao presidente Putin, segundo a pesquisa. 

Foram ainda encontradas matérias em russo também em países da Europa Central e Oriental, com mais destaque na Bulgária.

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Segundo o professor Innes, à medida em que as principais plataformas de mídia social se tornaram mais alertas aos riscos das operações de influência do estado estrangeiro, atores e propagandistas de desinformação têm buscado novas vulnerabilidades no ecossistema de mídia para explorar:

“Ao adotar uma estratégia de mídia de “espectro completo” que combina informações de meios de comunicação sociais e tradicionais, esta campanha sofisticada teve o potencial de moldar os pensamentos, emoções e comportamentos de vários públicos internacionais diversos em relação a matérias em grandes organizações de mídia”.

No entanto, apesar das evidências, o pesquisador observa que as táticas e técnicas usadas para ‘hackear’ a função de comentários no ecossistema de mídia tornam quase impossível atribuir a responsabilidade pelo comportamento pró-Kremlin com base em dados de código aberto disponíveis publicamente.

Ele recomenda que as empresas de mídia que administram sites participativos sejam mais transparentes sobre como estão lidando com a desinformação e mais proativas na prevenção dela.

O estudo completo pode ser visto aqui.

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