A invasão da Rússia à Ucrânia motivou uma outra guerra que vai além das fronteiras físicas. No Twitter, perfis controlados e associados ao Kremlin espalham propaganda russa com fake news e manipulação de fatos para confundir a opinião pública.
Aproveitando uma brecha da própria plataforma, as publicações do governo russo estão alcançando milhões de pessoas em todo o mundo sem nenhum tipo de filtro ou verificação de conteúdo por meio de uma prática conhecida como “astroturfing”.
O alerta foi feito pelos professores Timothy Graham, da Universidade de Tecnologia de Queensland, e Jay Daniel Thompson, do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, da Austrália, que rastrearam a atividade de 75 contas oficiais do governo russo no Twitter para entender como as fake news relacionadas à guerra estão sendo espalhadas de forma deliberada e sem contestação.
Propaganda pró-Rússia ganha visibilidade no Twitter
A palavra astroturfing faz um trocadilho com o termo em inglês “grassroots”, que em tradução literal significa raiz de grama, mas é uma expressão associada a movimentos sociais espontâneos de comunidades.
O termo astroturfing deriva-se de AstroTurf, uma marca de grama sintética.
No jargão das mídias digitais, ela passou a significar movimentos nas redes sociais que aparentemente vêm de pessoas comuns, mas que na verdade são ações orquestradas por agentes não identificados como autores das postagens e opiniões, atuando de forma sincronizada e rápida para disseminar desinformação ou propaganda política.
Por meio desse recurso, contas do Twitter que defendem o governo da Rússia estão desempenhando um papel fundamental na disseminação da propaganda pró-Rússia no conflito com a Ucrânia, segundo os professores.
Embora o Twitter tenha menos usuários que o Facebook ou o Instagram, ele é considerado um site fundamental para a produção e divulgação de notícias — tanto verdadeiras como falsas.
É a plataforma mais utilizada em vários países por jornalistas, segundo apontam diversas pesquisa. Por isso, seu conteúdo influencia os usuários diretos e pode influenciar a produção de notícias em outros meios.
Os especialistas australianos examinaram 75 contas na plataforma associadas ao governo da Rússia, apontadas como importantes fontes e amplificadoras de desinformação contra a Ucrânia na rede social.
Em março, esses perfis somavam mais de 7 milhões de seguidores. Conteúdos postados neles foram retweetados 35,9 milhões de vezes, receberam 29,8 milhões de curtidas e 4 milhões de respostas.
Entre 25 de fevereiro e 3 de março de 2022, essas contas fizeram 1.157 tweets – e cerca de 75% deles foram sobre a Ucrânia.
O levantamento revelou que as contas espalhavam narrativas falsas e aprovadas pelo Kremlin para justificar a invasão ao território vizinho.
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Entre as fake news espalhadas de forma deliberada por perfis apoiados pela Rússia está o genocídio em massa de civis realizado pelo governo ucraniano.
Outra dizia que o presidente do país, Volodymyr Zelensky, era um agente da “Nova Ordem Mundial”.
Essas alegações foram desmentidas por jornais e agências de checagem de dados, mas não antes de atrair milhões de visualizações e oferecer uma suposta justificativa para a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Os tweets abaixo mostram como essa ação coordenada ocorre com as contas do governo russo que espalham narrativas falsas: deslegitimando a Ucrânia como um Estado soberano, semeando dúvidas e inverdades sobre o governo ucraniano e a infiltração neonazista, espalhando “achismos” que minimizam a invasão da Ucrânia, chamando a atenção para supostos crimes de guerra por outros países e espalhando teorias da conspiração sobre a pesquisa de armas biológicas na Ucrânia e EUA.
Brecha do Twitter usada pela Rússia
Facebook, Twitter, YouTube e muitas outras plataformas são projetadas como sistemas de amplificação, explicam os pesquisadores.
Dessa forma, qualquer pessoa com conexão à internet pode acessar as mídias sociais, onde todo tipo de conteúdo pode ser compartilhado com uma velocidade e alcance que eram impossíveis com as mídias tradicionais.
A grande velocidade com que a desinformação é disseminada – especialmente por meio de “contas bot” automatizadas – dificulta o acompanhamento dos moderadores de conteúdo, e é essa a brecha que a Rússia está explorando no Twitter, segundo os professores.
“A natureza emotiva e partidária de muita desinformação online também significa que os usuários da internet e os jornalistas são mais propensos a espalhá-la sem uma verificação cuidadosa”, dizem eles.
Para conter a disseminação de fake news, o Twitter coloca rótulos de advertência em conteúdos de mídias afiliadas a Estados, e não os recomenda para os usuários da rede. É o caso da estatal russa RT, por exemplo.
No entanto, essas regras não se aplicam a contas estatais não rotuladas como mídia, como as embaixadas estrangeiras.
Como resultado, essas contas estão inundando a plataforma com propaganda pró-Rússia. Para os professores, essa é uma lacuna nas práticas de moderação do Twitter que recebeu pouca atenção.
Com essa “brecha”, as 75 contas do governo russo analisadas trabalham juntas para ampliar a desinformação. O levantamento descobriu que elas costumam retweetar o mesmo conteúdo falso quase ao mesmo tempo.
Em artigo na plataforma de divulgação científica The Conversation, os professores explicam:
Essa é uma tática bem conhecida de desinformação coordenada ou “astroturfing”, onde uma rede de contas retweeta o conteúdo repetidamente para amplificá-lo e maximizar seu alcance.
A imagem acima mostra uma visualização do comportamento coordenado de retuítes entre as 75 contas do governo russo.
Os nós maiores são coordenados com mais frequência, enquanto os links indicam retuítes dentro de 60 segundos um do outro e as cores representam “comunidades” de contas que tendem a co-retuítar com frequência.
Os perfis mais proeminentes no astroturfing pró-Kremlin são as duas contas do Ministério das Relações Exteriores da Rússia (@mfa_russia e @mid_rf), a Missão Russa em Genebra (@mission_russian) e a Embaixada da Rússia nos EUA (@rusembusa).
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Para os pesquisadores, o Twitter precisa fazer mais para proteger a plataforma de conteúdo nocivo de atores estatais, já que as contas de governos ainda estão livres para inundar a rede com informações falsas.
As políticas e regras do Twitter precisam ser modificadas para se adequarem a circunstâncias especiais, como a guerra.
Elas também precisam se adaptar a contextos não ocidentais, onde a desinformação é facilmente perdida pela moderação automatizada sintonizada com o idioma inglês e as normas dos EUA e da Europa Ocidental.
No artigo no The Conversation, eles apontam que as plataformas tradicionalmente seguem o ditado tecno-libertário de que “a informação quer ser livre”. Porém, isso acabou sendo um desastre para a democracia liberal e a saúde pública.
Eles salientam que contexto comercial, também é bom para os negócios dar independência aos usuários postarem tudo o que quiserem: bloquear a desinformação de governos pode resultar em governos bloqueando plataformas em retaliação.
E alertam que além das mudanças nas próprias plataformas, os usuários individuais do Twitter também podem ajudar a conter a disseminação de desinformação emitida por Estados como a Rússia.
“Os usuários podem e devem se perguntar: quão precisa é essa afirmação? Como a reclamação pode ser verificada? Quem está postando essas informações sobre a Rússia?
Que participação essa pessoa ou pessoas têm nos assuntos do Estado russo? Como amplificar esse conteúdo, até mesmo criticá-lo, inadvertidamente, espalharia ainda mais?”