Londres – Um novo relatรณrio da Unesco traz conclusรตes alarmantes sobre os riscos que o jornalismo profissional e independente enfrentam diante do crescimento exponencial das redes sociais.

A anรกlise, com recorte mais recente feito entre 2021 e 2022, identificou que tanto o pรบblico de notรญcias quanto as receitas de publicidade migraram em massa para as plataformas controladas pelas gigantes da internet Google e Meta/Facebook.

A pandemia de covid-19 contribuiu para a crise das empresas de mรญdia e evidenciou o risco para o direito fundamental ร  informaรงรฃo, constatou o relatรณrio.

Riscos do jornalismo profissional foram agravados na pandemia

A pandemia intensificou as tendรชncias existentes de queda na receita de publicidade, perda de empregos e fechamento de redaรงรตes, avaliou o estudo da Unesco.

O perรญodo agravou os ataques online e fรญsicos a jornalistas e demais profissionais de imprensa, alรฉm de deixar dรบvidas sobre o futuro da profissรฃo e sua rentabilidade.

Dados do Centro Internacional para Jornalistas analisados pela agรชncia da ONU mostram que dois terรงos dos jornalistas se sentem menos seguros em seus empregos como resultado das pressรตes econรดmicas da pandemia, apesar dos รบltimos dois evidenciarem a importรขncia da profissรฃo para a sociedade.

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Manifestantes em frente ao consulado da Rรบssia na cidade de Nova York para protestar contra a guerra na Ucrรขnia (Foto: Tong Su/Unsplash)

Isso porque ร  medida que o conteรบdo falso relacionado ร  covid-19 se espalha rapidamente nas mรญdias sociais, o fechamento de redaรงรตes e os cortes de empregos criaram um vรกcuo significativo no cenรกrio da informaรงรฃo, principalmente no Hemisfรฉrio Sul.

Esse vรกcuo, no entanto, nรฃo permanece vazio por muito tempo. Algoritmos das principais redes sociais ainda nรฃo conseguem distinguir de maneira eficiente publicaรงรตes reais e falsas.

Na ausรชncia do jornalismo profissional, as fake news se disseminam pelas redes sociais de forma assustadora.

Em setembro de 2020, mais de 1 milhรฃo de postagens circularam no Twitter com informaรงรตes imprecisas, nรฃo confiรกveis โ€‹โ€‹ou enganosas relacionadas ร  pandemia, de acordo com dados do Observatรณrio de Infodemias Covid-19 da Fondazione Bruno Kessler.

Desde o inรญcio da pandemia atรฉ agosto de 2021, mais de 20 milhรตes de publicaรงรตes foram removidas do Facebook e no Instagram por promoverem informaรงรตes falsas relacionadas com ao coronavรญrus.

Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, diz que o jornalismo se mostrou fundamental para a sociedade democrรกtica nos รบltimos dois anos, mas enfrenta uma crise que pode decretar seu fim.

“Num momento em que o acesso ร  informaรงรฃo de qualidade tem sido uma questรฃo de vida ou morte, vimos mais uma vez como as nossas sociedades precisam de jornalistas e profissionais da comunicaรงรฃo social para informar os cidadรฃos num mundo cada vez mais complexo.

“No entanto, a pandemia tambรฉm sublinhou, e por vezes agravou, as ameaรงas que pesam sobre os meios de comunicaรงรฃo โ€“ desde a fragilidade financeira atรฉ aos ataques ร  liberdade de imprensa. Essas ameaรงas podem mesmo ser existenciais.”

Nรฃo รฉ sรณ no bolso: jornalistas correm riscos de todos os lados

O relatรณrio elaborado pela Unesco apontou que a crise econรดmica tambรฉm ocorre em um momento que cresce ameaรงas ร  seguranรงa online e fรญsica de jornalistas.

Alรฉm de governos opressores, lobbies privados e atรฉ pessoas comuns da sociedade se sentem cada vez mais encorajados a intimidar jornalistas. Uma das principais agressรตes modernas ร  imprensa sรฃo insultos e ofensas na internet.

Quem mais sofre com ataques online e coordenados sรฃo as mulheres jornalistas em todo o mundo, destacou a agรชncia.

Uma pesquisa da Unesco publicada no ano passado descobriu que sete em cada dez mulheres jornalistas jรก sofreram violรชncia online. Um quinto relatou ter sofrido violรชncia offline que tinha conexรฃo com as ameaรงas recebidas em plataformas digitais.

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Como รฉ de se esperar, a violรชncia virtual รฉ convertida em dados trรกgicos: de 2016 atรฉ o final de 2021, a Unesco registrou assassinatos de 455 jornalistas, que morreram por causa de seu trabalho ou enquanto o exerciam.

A impunidade, destaca a agรชncia, รฉ um ingrediente mortal para que esses nรบmeros tenham perspectivas de crescerem:

“Quase nove em cada dez assassinatos continuam sem soluรงรฃo. A taxa global de impunidade por matar jornalistas alimenta um ciclo de violรชncia e tem um efeito assustador sobre todos os jornalistas.”

O Brasil, com 14 incidentes, รฉ o รบnico paรญs lusรณfono que aparece entre as 10 naรงรตes com mais mortes de jornalistas ocorridas entre 2016 e 2021.

No entanto, รฉ um dos exemplos da Amรฉrica Latina, ao lado de Colรดmbia, do Equador e do Paraguai, com novos mecanismos de monitoramento da seguranรงa e proteรงรฃo destes profissionais de ameaรงas e violรชncia.

Ataques contra jornalistas que cobrem protestos, manifestaรงรตes e tumultos tambรฉm ocorrem com frequรชncia alarmante, apontou a Unesco.

De janeiro a agosto de 2021, esse tipo de violรชncia foi registrado em pelo menos 60 paรญses em todas as regiรตes do mundo. Desde 2015, pelo menos 13 jornalistas foram mortos enquanto cobriam protestos.

Para a organizaรงรฃo, as leis nรฃo protegem suficientemente os jornalistas desses riscos online e fรญsicos em grande parte dos paรญses:

“Desde 2016, 44 paรญses adotaram ou alteraram novas leis que contรชm linguagem vaga ou ameaรงam puniรงรตes desproporcionais para aรงรตes como ‘espalhar fake news’, ‘rumores’ ou ‘cyber-difamaรงรฃo’, levando ร  autocensura.”

A Unesco tambรฉm destaca que a difamaรงรฃo ainda รฉ considerado crime em 160 paรญses. Isso abre brechas para que a legislaรงรฃo seja usada como base para prisรฃo de profissionais de imprensa, efetivamente amordaรงando os jornalistas.

Dados do Comitรช para a Proteรงรฃo dos Jornalistas mostram que 293 jornalistas foram presos em 2021 — um recorde.

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A anรกlise da Unesco destaca que, nos รบltimos cinco anos, aproximadamente 85% da populaรงรฃo mundial experimentou uma diminuiรงรฃo da liberdade de imprensa em nรญvel nacional.

Mesmo em paรญses com longa tradiรงรฃo de preservaรงรฃo de um jornalismo livre e independente, as transformaรงรตes financeiras e tecnolรณgicas tiveram impacto nesse sentido.

O perรญodo analisado tambรฉm ficou marcado pela queda da liberdade de imprensa, novas polรญticas restringindo a liberdade de expressรฃo online e fatores em plataformas de mรญdia social que ameaรงaram outros meios de comunicaรงรฃo.

Unesco aponta medidas para minimizar riscos a jornalistas

O relatรณrio apresentado pela Unesco conclui que governos no mundo todos precisam adotar  medidas polรญticas em trรชs รกreas-chave para proteger a mรญdia independente e garantir a seguranรงa dos jornalistas e do setor como um bem pรบblico.

1. Apoiar a viabilidade econรดmica dos meios de comunicaรงรฃo independentes, respeitando a autonomia profissional dos jornalistas. Os governos podem, por exemplo, oferecer benefรญcios fiscais a meios de comunicaรงรฃo independentes, de forma justa, transparente e sem comprometer a independรชncia editorial.

Para a diretora-geral da agรชncia, Audrey Azoulay, a queda pela metade das receitas globais de publicidade em jornais por causa da concorrรชncia com as redes sociais estรก inviabilizando o atual modelo econรดmico dos meios de comunicaรงรฃo 

“Num momento em que cinco plataformas digitais absorvem mais de metade de toda a receita publicitรกria, os meios de comunicaรงรฃo tรชm de encontrar novos modelos econรดmicos para sobreviver”, alerta.

2. Desenvolver a alfabetizaรงรฃo midiรกtica e informacional para ensinar a todos os cidadรฃos a diferenรงa entre informaรงรตes confiรกveis e verificadas e as nรฃo verificadas, e incentivar o pรบblico a obter informaรงรตes da mรญdia profissional em vez de redes sociais.

Azoulay destaca que esse ponto รฉ fundamental para que a sociedade faรงa frente ao papel crescente das plataformas de mรญdias sociais e seus algoritmos, que sรฃo muitas vezes “opacos quando se trata de acesso ร  informaรงรฃo, apesar da proliferaรงรฃo de fake news e do discurso de รณdio.”

3. Promulgar ou reformar a lei de mรญdia para apoiar a produรงรฃo de notรญcias livre e pluralista, de acordo com os padrรตes internacionais sobre Liberdade de Expressรฃo, conforme o Artigo 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polรญticos da ONU.

A diretora-geral da Unesco reforรงa que a crise das empresas de mรญdia nรฃo serรก solucionada sem garantias previstas em lei de seguranรงa para jornalistas exercerem sua profissรฃo.

As novas formas de violรชncia contra a imprensa, observadas e incentivadas pelos meios digitais, impedem, segundo ela, que ataques a jornalistas sejam simplesmente explicados por taxas de homicรญdio ou pela impunidade por crimes violentos.

Leia aqui o relatรณrio “Tendรชncias Mundiais em Matรฉrias de Liberdade de Expressรฃo e Desenvolvimento da Comunicaรงรฃo Social”.

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