Londres – A nova série da Netflix sobre o apresentador de TV Jimmy Savile causou desconforto em muitos jornalistas britânicos, que de alguma forma tiveram participação no que pode ser considerada uma omissão descomunal da imprensa e mais diretamente da rede BBC.
Desde a década de 1950 Savile enfeitiçou o país com seu jeitão extravagante e sua dedicação a causas sociais, liderando campanhas beneficentes que levantaram mais de £40 milhões (R$ 241 milhões, em valores da época ) e se consagrando como um dos maiores astros da história do entretenimento.
Mais do que fazer maratonas ou comandar shows de arrecadação de fundos como muitas celebridades, ele atuava como voluntário em instituições de saúde, trabalhando como porteiro ou auxiliar de equipes médicas.
O show de horror de Jimmy Savile
Parecia altruísta. Mas era uma fachada para o chamado “show britânico de horror”, o nome da série que trouxe de volta à pauta um trauma do país e bateu recordes de audiência em sua primeira semana.
No Brasil, o programa em dois capítulos ganhou o nome de Segredos e Crimes de Jimmy Savile.
O personagem retratado pela série era um predador sexual pedófilo que abusou de 450 pessoas de cinco a 75 anos de idade, segundo os registros.
Os abusos foram praticados em pessoas em tratamento nos hospitais e instituições de caridade que ajudava e com convidados de seus programas na BBC, a maioria mulheres e crianças.
Ele se tornou uma celebridade apresentando a parada musical Top Of The Pops, na década de 60, em que recebia talentos e fãs jovens.
Depois estrelou o Jim’ll Fix It, em que realizava sonhos de crianças. Elas escreviam cartinhas pedindo coisas meio malucas, como um menino que queria ver seu pato voando.
E Savile realizava o desejo, com toques de humor. No caso do pato, criança e animal embarcaram em um voo, e o pet conseguiu ver o mundo do alto junto com seu dono, um tipo de bizarrice que encantava o país e alimentava a lenda do personagem “malucão do bem”.
Jimmy Savile, um personagem único
Jimmy Savile não se parece com nada do que tenhamos visto no Brasil ou talvez em qualquer outro país. Tanto pelo seu grau de esquisitice, de roupas a comportamento, quanto pela extensão dos crimes que praticou por décadas a fio.
Seu poder de encantamento era tamanho que conquistou figuras como a durona Margareth Tatcher, então primeira-ministra britânica que não sossegou enquanto não conseguiu para ele o título de Sir, maior honraria do país, concedido pela Coroa britânica.
A série da Netflix mostra cenas do apresentador com a premiê em momentos de tietagem explícita, incomuns para a figura sisuda de Tatcher.
O personagem que Savile criou para si próprio, com cabelos louros despenteados, uma franjinha esquisita, usando roupas malucas e quase sempre com um enorme charuto na boca ou nas mãos, tinha tudo para despertar desconfiança.
Savile dizia não ter moradia fixa, dormindo em vários lugares, incluindo um decadente motorhome. Não tinha família e nunca exibiu namoradas.
É difícil crer que suas maldades tenham ficado ocultas por tanto tempo, até sua morte, em 2011. E que ninguém da BBC tenha desconfiado de nada do que ele fazia nos bastidores, ou decidido investigar os rumores.
O documentário destaca falas dele que pareciam meio enigmáticas, e que hoje são interpretadas como sinais indiretos que ele estava passando sobre o que fazia nos bastidores e ninguém sabia.
Entendendo o contexto, ele parecia querer mandar um recado, ou fazer uma provocação, mostrando como todos estavam sendo enganados.
Assédio sexual tolerado quando envolve poderosos como Savile
O mistério sobre como o monstro atrás da figura exótica conseguiu chegar tão longe tem algumas explicações.
Era uma época em que abusos sexuais não eram levados tão a sério, chegando a ser tolerados.
Quando o escândalo começou a emergir, perto de sua morte, em 2011, aos 85 anos, soube-se que policiais de Yorkshire, de onde ele era, parecem ter feito vista grossa a suspeitas.
Outra explicação é o poder absurdo que Savile conquistou, que pode ter desestimulado pessoas fragilizadas a encararem alguém reverenciado por Tatcher, pelos príncipes Philip e Charles e até pelo papa João Paulo II, sem contar estrelas do mundo artístico que participavam de seus eventos beneficentes.
A omissão da imprensa no caso Savile
Mas nada justifica a omissão da imprensa, e isso é exposto na série. Alguns jornalistas assistem envergonhados a cenas em que receberam o apresentador em seus programas, totalmente deslumbrados e entrando no jogo de sedução, como Selina Scott.
No segundo episódio da série da Netflix, ela chora ao rever o momento em que chega a beijá-lo na boca.
Em um artigo escrito depois do lançamento do programa, Scott relatou que não foi o único tipo de situação em que participou como parte de uma cultura de tolerância ao assédio na rede.
Um dos que chegou a suspeitar de algo e que chegou a confrontar Jimmy Savile com algumas verdades foi Andrew Neil, que já dirigiu o Sunday Times e passou por grandes redações britânicas.
No documentário, o veterano jornalista de 72 anos narra sua entrevista com Savile em 1995, em que o questionou pelo fato de os produtores do show não terem encontrado sinal de namoradas, e indagou sobre seu estranho relacionamento com a mãe.
Mas Neil admite na série da Netflix que o apresentador saiu pela tangente, e ficou por isso mesmo.
Sobrou até para o príncipe Charles. O documentário revelou trocas de cartas comprovando que Savile o aconselhava sobre como lidar com a mídia nos escândalos envolvendo a família real.
Savile, mancha na história da BBC
O caso é uma mancha negra na história da BBC, que poderia ter percebido evidências de que algo estava errado − ou pode ter encoberto atos ocorridos em seus estúdios, o que parece mais provável.
O apresentador era uma estrela insubstituível. E revelar seus crimes acabaria respingando na própria BBC. O incrível é a direção não imaginar que tudo acabaria vindo à tona.
Apesar de no momento da morte de Savile os rumores já estarem mais fortes, o funeral foi transmitido ao vivo pela rede.
É difícil crer que algo parecido possa se repetir hoje. Mas o espantoso é saber que Savile morreu há apenas 11 anos, sem sequer ter sido acusado pelos crimes, só expostos um ano depois em um documentário da ITV veiculado em 2012.
O programa foi fruto do trabalho do jornalista Meirion Jones, que na época trabalhava na BBC. Ele investigou o caso, mas como a emissora não demonstrou interesse em contar a história, extremamente negativa para ela própria, acabou conseguindo levar o caso para outra rede, e foi aí que o país tomou conhecimento do show de horrores.
Hoje Jones trabalha como editor do projeto Bureau of Investigative Journalism, que realiza e patrocina reportagens investigativas.
Logo após o lançamento da série da Netflix, ele fez aos leitores um relato sobre os acontecimentos que se seguiram ao período coberto pelo programa.
Jones contou que ele e a repórter Liz MacKean, que trabalhou na apuração do caso, foram chamados de traidores pelos superiores no jornalismo da BBC e “empurrados para fora” da emissora.
A partir da exibição do programa em 2012,, muitas vítimas do pedófilo resolveram contar suas histórias, dando a verdadeira dimensão dos horrores praticados e da omissão de tanta gente em seu entorno.
Ao assistir à série da Netflix, a impressão que se tem é de uma alucinação coletiva, criada por um personagem com um poder de sedução tão descomunal que conseguiu paralisar a sociedade e uma mídia que não quis ou não conseguiu revelar o horror a tempo.
“Segredos e Mentiras de Jimmy Savile” não é um programa agradável. É tenso, chega a ser revoltante em certos momentos.
Mas para quem se interessa por jornalismo, indústria de entretenimento e pelo combate ao assédio sexual muitas vezes praticado por poderosos que permanecem impunes, a série é obrigatória.