Os riscos à integridade física de jornalistas não estão apenas em zonas de guerra como a Ucrânia, mas também na cobertura de manifestações, com mais um caso dramático: uma jornalista chilena está internada em estado de “extrema gravidade” depois de ser baleada no rosto.

Francisca Sandoval documentava uma passeata no Dia do Trabalho no bairro Meiggs, em Santiago, para a emissora comunitária local Canal Señal 3 La Victoria. Homens armados dispararam contra os participantes, ferindo também outros jornalistas. 

O caso revoltou o Chile sobretudo porque repetiu o padrão de impunidade que se tornou comum em crimes contra a imprensa: os suspeitos foram presos, mas a promotoria determinou que ficassem em prisão domiciliar. 

Caso da jornalista choca o Chile

Entidades defensoras do jornalismo livre condenaram o atentado, ocorrido dois dias antes do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

O caso tomou proporções políticas. O presidente chileno, Gabriel Boric, esteve no hospital em que a jornalista está internada e conversou com seus familiares, na terça-feira (3). Ele também recebeu uma grupo de parlamentares cobrando medidas contra a violência. 

O Chile não está entre as nações com situação de liberdade de imprensa mais crítica no mundo e nem na América Latina, ocupando a 82ªa posição entre 180 países no índice global de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) publicado em 3 de maio. 

O Brasil é o 110º da lista. Mas ambos estão na faixa laranja, considerada “problemática”.

Na análise sobre o país, a RSF salientou o ressurgimento dos protestos de rua e o questionamento do modelo político vigente, expuseram a violência perpetrada contra jornalistas pela polícia e pelos serviços de inteligência militar.

E apontou que as leis existentes não são eficazes para proteger os profissionais de imprensa, pois “embora com algum progresso, os ataques a jornalistas e à mídia permanecem em grande parte impunes”. 

O episódio também evidencia outra fragilidade do trabalho da imprensa em vários países devido à ausência de treinamento para trabalhar em locais de risco e de equipamentos de proteção individual. 

Jornalista foi baleada durante repressão da polícia 

Nas redes sociais do Señal 3 La Victoria, emissora que Francisca prestava serviços, foram compartilhadas diversas imagens da passeata.

Vídeos mostram o momento em que a polícia tenta dispersar a multidão com jatos de água e balas de borracha.

Os jornalistas Matías Burmiller e Fabiola Moreno também foram feridos a bala durante os protestos em Santiago. Segundo a imprensa local, ambos já tiveram alta hospitalar.

Em novo boletim médico divulgado na quinta-feira (5), o hospital Posta Central afirmou que o estado de saúde da jornalista é “extremamente grave”, sem alterações. Ela está internada na UTI.

 

Uma vigília foi feita diante do hospital. 

 

O sindicato também confirmou que Fabiola Moreno, repórter da Rádio 7, foi baleada no ombro durante a manifestação. O repórter Roberto Caro, do jornal comunitário Prensa Piensa, também ficou ferido ao ser baleado na perna.

Ambos  receberam tratamento médico e já tiveram alta, segundo relato do presidente do Sindicato dos Jornalistas do Chile, Danilo Ahumada, ao CPJ (Comitê para a Proteção dos Jornalistas).

A coordenadora do Programa para a América Latina e Caribe do CPJ, em Nova York, Natalie Southwick, cobrou a investigação do caso da jornalista baleada no rosto e dos demais feridos pelas autoridades chilenas:

“Os protestos são consistentemente um dos ambientes mais perigosos para os jornalistas no Chile, e é essencial que eles possam cobrir manifestações com segurança e sem medo de violência.”

A Federação Internacional de Jornalistas (IFJ, na sigla em inglês) exigiu urgência para a apuração dos fatos, principalmente para determinar se a agressão aos jornalistas foi para impedir a realização de seu trabalho. 

“Esse acontecimento, dois dias antes do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, mostra que o trabalho jornalístico ainda não está garantido nesse tipo de cobertura, e que os resquícios da extrema violência sofrida pelos profissionais da imprensa e manifestantes nos protestos sociais de 2019 no Chile ainda persistem.”

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Logo após o incidente, a polícia chilena deteve dois suspeitos de dispararem armas de fogo no protesto de 1º de maio na capital.

Reportagens da imprensa local informaram que a promotoria concedeu prisão domiciliar para eles, fato que motivou mais indignação entre as entidades de jornalismo.

Ao CPJ, Domingo Vargas, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores dos Meios de Comunicação Social (FENATRAMCO), criticou a decisão da justiça:

“O ataque aos jornalistas da mídia comunitária se torna mais confuso.

Essa confusão é dada por alguns vídeos e fotografias de pessoas que estiveram envolvidas nos acontecimentos em animada conversa com policiais que ‘supostamente’ reprimem aqueles que causam desordem.

As pessoas presas e supostamente responsáveis ​​pelo tiroteio foram colocadas em prisão domiciliar. Um fato que chama poderosa atenção.”

O veículo que Francisca Sandoval também falou sobre a prisão domiciliar para os dois detidos. Para o Señal 3 La Victoria, o “poder da impunidade” foi fortalecido pela Justiça e pelo Ministério Público.

“[Isso é] uma zombaria para os feridos e nossa colega.”

Na segunda-feira (2), a Polícia de Investigação do Chile deteve um terceiro suspeito, que é investigado como o responsável por ter atirado em Francisca.

Horas antes de visitar a família da jornalista no hospital, o presidente da república Gabriel Boric, participou de uma reunião com a senadora independente Fabiola Campilla para discutir o episódio da jornalista baleada e dos outros atingidos. 

Impunidade em crimes contra jornalistas 

Em seu balanço anual sobre o estado do jornalismo no mundo, publicado em janeiro, a Unesco chamou a atenção para a impunidade. Segundo a organização,  87% de todos os crimes contra jornalistas ocorridos desde 2006 continuam sem solução.

O risco das manifestações de rua foram alvo de atenção no documento:

Além dos casos seguidos de jornalistas assassinados, muitos profissionais do setor continuam sujeitos a altos índices de violência física, de intimidação, de assédio e com risco de serem presos, que podem acontecer inclusive durante a cobertura de protestos de rua.  

As mulheres jornalistas são ainda vítimas de assédio virtual.

A exposição a perigos em manifestações foi também aborda em um artigo da LatAm Journalism Review (LJR), apontando que a violência acontece com frequência na América Latina.

Ao menos 11 jornalistas morreram durante protestos na América Latina e no Caribe nos últimos 29 anos (dado de 2021), segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ).

Na maioria dos casos, os agressores suspeitos são membros das forças de segurança ou atores governamentais.

Dos 11 casos, a pesquisa da LJR mostrou que apenas dois resultaram em condenações que foram mantidas.

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