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Livro que teria inspirado Putin previu Parada da Vitória com políticos dos EUA algemados

Vladmir Putin em discurso na Parada da Vitória da Rússia (foto: reprodução vídeo Kremlin)

Londres –A Parada da Vitória neste 9 de maio na Rússia, celebração que data do fim da Segunda Guerra e foi hoje acompanhada hoje com atenção pela mídia global para decifrar as mensagens de Vladmir Putin ao mundo, inspirou uma das passagens mais delirantes de um livro apontado como referência para o expansionismo do presidente russo. 

 “Terceiro Império: A Rússia como deveria ser” previu com anos de antecedência a semi-anexação das regiões separatistas da Geórgia, Abkhazia e Ossétia do Sul, a anexação da Crimeia, a incursão nas regiões de Donetsk e Luhansk e a atual invasão da Ucrânia.

Ambientada em 2054 e narrada por um historiador brasileiro fictício, a história do triunfo do personagem “Vladimir II, o Restaurador” termina com uma Parada da Vitória bem diferente da que aconteceu hoje: as estrelas são políticos, celebridades e artistas de Hollywood derrotados e algemados.

Parada da Vitória na Rússia sem surpresas 

Pelo menos por enquanto a suposta projeção não se tornou realidade, porque no livro ela seria a celebração na vitória da Terceira Guerra Mundial. 

A Parada da Vitória na Rússia, que aconteceu nas primeiras horas do dia desta segunda-feira (9) em Moscow, teve oficiais, soldados, exibição de veículos militares e discurso de Vladimir Putin culpando a OTAN pela invasão da Ucrânia. 

Mas nem por isso o livro deve ser deixado de ser levado a sério, na opinião de historiadores e analistas políticos que acompanham a situação da guerra na Ucrânia.

Para a diretora do programa de estudos russos da Georgia Tech’s School of Modern Language, Dina Khapaeva, “Terceiro Império: A Rússia como deveria ser”, publicado em 2006 antecipa com surpreendente precisão as manobras do Kremlin e seria a inspiração para o expansionismo de Vladmir Putin.

Um artigo de Khapaeva publicado na revista americana The Atlantic em março, intitulado “Putin está apenas seguindo o manual”, voltou a chamar a atenção para o livro. Seu autor, Mikhail Yuriev, conhecia Vladimir Putin pessoalmente.  

Falecido em 2019, Yuriev era empresário, foi vice-presidente da câmara baixa do parlamento russo e era membro do conselho político do Partido da Eurásia, que prevê uma ordem social feudal controlada por uma classe política governando pelo medo.

O livro se tornou conhecido fora da Rússia ao ser mencionado em 2014 por Maria Snegovaya, uma cientista política norte-americana, depois de a previsão da anexação da Crimeia se concretizar. Desde então, outras passagens também viraram realidade, como a guerra na Ucrânia. 

Políticos algemados na Parada da Vitória 

No livro, todos esses acontecimentos levam à Terceira Guerra Mundial, vencida pela Rússia e comemorada com uma Parada da Vitória bem diferente da que aconteceu hoje. 

Os participantes, algemados e com placas penduradas no pescoço, são representantes da elite norte-americana: o então presidente George Bush III, ex-presidentes, políticos, empresários, cantores e artistas de Hollywood.

Khapaeva explica que a passagem da Parada da Vitória transmite a mensagem de que a Rússia é capaz de derrotar não apenas o exército norte-americano, mas a própria civilização americana, indo além do expansionismo sobre os territórios vizinhos.

Apesar do exagero, para Khapaeva o livro oferece insights importantes sobre a mentalidade do Kremlin, a maneira como Putin pensa o Ocidente e suas atitudes em relação aos países vizinhos:

“Compreender a visão expansionista da Rússia é fundamental para as decisões ocidentais sobre a invasão atual: a Ucrânia não é o único alvo de Putin.”

Vladimir II, o Restaurador 

Na obra, o historiador brasileiro que faz o papel de narrador começa explicando como o mundo passou a ser dominado pela Rússia, depois de o país ter vencido os Estados Unidos e a Europa e estabelecido uma nova ordem mundial.

A Terceira Guerra Mundial é apresentada no livro como uma consequência da invasão da Ucrânia –com a vitória da Rússia, é claro, graças a uma arma secreta que a tornaria invencível num confronto nuclear.

O Terceiro Império antecipa o uso da chantagem nuclear e da dependência energética da Europa para que a Rússia atinja seus objetivos de expansionismo.

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As conquistas russas dão origem ao Terceiro Império do título – sucedendo o primeiro, dos czares, e o segundo, do período da União Soviética. E tudo graças às ações de “Vladimir II, o Restaurador”.

O narrador conta que no início do Terceiro Império, uma revolta pró-Rússia patrocinada pelo Kremlin ocorreu na Ucrânia. Seus objetivos eram “a reunificação com a Rússia e o abandono da integração com a Europa, bem como a rejeição do bloco anti-russo da OTAN”.

Essa revolta resulta em uma guerra não declarada, com tropas russas marchando para a Ucrânia, história semelhante à que o mundo assiste desde fevereiro.

Isso faz com que nove regiões no leste e sul da Ucrânia – incluindo Crimeia, Donetsk, Luhansk e outras áreas sob ocupação russa hoje – anunciem seu “não reconhecimento das autoridades e do estado ucraniano” e proclamem uma “República Donetsk-Mar Negro” pró-Rússia.

A expansão é endossada por um referendo das áreas tomadas, onde 82% da população vota a favor da adesão. E na Rússia, 93% votam pela “admissão do leste da Ucrânia”.

O livro também antecipava uma passividade do Ocidente em relação à invasão da Crimeia e das regiões separatistas. De fato, as sanções impostas à Rússia em 2014 foram leves.

Como resultado da Primeira Expansão, o narrador informa que Vladimir II aproveitou para criar a União Russa, que inclui também a Bielorússia, partes da Ásia Central e várias regiões separatistas das antigas repúblicas  soviéticas.

O narrador explica que o ressurgimento da Rússia assim iniciado por Vladimir II foi complementado por seu sucessor, Gavriil, o Grande.

No livro, Gavriil recusa categoricamente aos ucranianos e aos bielorrussos o status de nações separadas. No seu entender, as tentativas de considerá-los como etnias separadas da russa são “parte do plano ocidental para destruir a Rússia”.

Num artigo intitulado “Putin está apenas seguindo o manual” publicado no The Atlantic, a diretora do programa de estudos russos da Georgia Tech’s School of Modern Language, Dina Khapaeva, lembra que essas afirmações não são nada diferentes do que o líder do Kremlin vem dizendo desde 2008, de que a Ucrânia “nem mesmo é um estado”.

Putin usou argumento do livro para justificar anexação da Crimeia 

Na anexação da Crimeia em 2014, a Rússia utilizou a mesma estratégia do referendo mencionado no livro para justificar a tomada do território.

E tanto na Crimeia como na incursão em Donetsk e Luhansk, as forças russas assumiram o território ucraniano sob o pretexto de apoiar movimentos separatistas locais, conforme mencionado no livro.

Em seu artigo, Khapaeva ressalta que a Rússia reconheceu previamente a independência das repúblicas separatistas três dias antes de invadir a Ucrânia. E repetindo a receita da Crimeia, um líder rebelde dessas repúblicas disse que espera realizar em breve um referendo sobre a questão.

Khapaeva classifica tanto o livro como a guerra de Putin com a Ucrânia como expressões do “neo-medievalismo pós-soviético”:

“São fruto de uma ideologia antiocidental e antidemocrática que atribui à ‘civilização ortodoxa russa’ um papel dominante sobre a Europa e a América.”

Chantagem nuclear para facilitar expansionismo 

No livro, Yuriev não previu a reação em bloco do Ocidente e as pesadas sanções em consequência da invasão da Ucrânia que estão ocorrendo na vida real, mas antecipou o uso da chantagem nuclear como arma no expansionismo de Putin.

Em O Terceiro Império, a Rússia vence a Terceira Guerra Mundial por causa do temor de uma hecatombe nuclear pelas nações ocidentais .

“Os líderes americanos hesitaram em ordenar um ataque”, escreve Yuriev, “enquanto os russos mostraram claramente sua vontade de ir até o fim”.

Khapaeva analisa que Putin conta com a precisão desse prognóstico de Yuriev em seu expansionismo.

Logo após o início da guerra da Ucrânia, ele ameaçou usar armas nucleares caso outros países tentassem se envolver.

Yuriev também antecipou que a dependência da Europa em relação ao fornecimento de gás e petróleo da Rússia poderia ser utilizada como um trunfo contra reações ao expansionismo de Putin. 

Numa passagem de O Terceiro Império que relata uma entrevista à televisão francesa, Vladimir II diz:

“Você não gosta de nós?” o imperador zomba do entrevistador. “Tudo bem. Então, guerreie  e nos conquiste… Ou não compre nossos produtos energéticos, para tentar nos matar de fome.”

Khapaeva diz que é difícil distinguir esses argumentos que aparecem no livro dos discursos contemporâneos de expansionismo de Putin. 

E que mais uma vez a ficção de Yuriev se mostrou certeira, quando o chanceler alemão Olaf Scholz, resistindo à pressão internacional por um boicote às importações russas, falou da “importância essencial” do petróleo e do gás da Rússia para a economia europeia.

Expansionismo de Putin além da Ucrânia 

Um dos pontos mais alarmantes do livro que imaginou a delirante Parada da Vitória é que autor prevê que a Rússia não ficará satisfeita com a anexação parcial da Ucrânia, contentando-se apenas com a Crimeia e as regiões separatistas do leste.

O narrador do livro faz menção a um suposto acordo que se tentou firmar para encerrar a guerra, mostrando que o autor se divertia com a capacidade da Rússia de tirar proveito da diplomacia ocidental:

“Embora a anexação da Ucrânia Oriental não tenha sido oficialmente reconhecida, foi estipulado que a Rússia renunciaria a qualquer invasão no território a oeste do limite demarcado.

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Foi pura jogada de relações públicas por parte dos Estados Unidos, porque eles sabiam perfeitamente que a Rússia não tinha isso em mente.”

Em O Terceiro Império, as ambições geopolíticas russas forçam os Estados Unidos e a União Europeia a declarar guerra.

Segundo Yuriev, a Rússia enfrentaria esse desafio com uma arma secreta capaz de tornar o país invencível num confronto nuclear.

Isso faz com que no final tanto americanos como europeus se rendam, submetendo o mundo ao domínio russo. 

Para Natalia Antonova, jornalista ucraniana-americana ouvida pelo jornal The Times em uma reportagem sobre o livro, disse quee a mensagem de que a Rússia não se satisfará com uma vitória parcial e sua ênfase em humilhar os Estados Unidos contém um aviso sobre os planos do projeto de expansionismo de Putin:

“Este homem tem uma visão sombria e perturbadora – não apenas para a Ucrânia, mas para todos nós. A Ucrânia nunca poderia ser suficiente para ele. Não satisfaz seu desejo de vingança contra o Ocidente.”

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