Londres – Há um ano, um jovem jornalista da Bielorrússia voltava de férias na Grécia com a namorada quando se tornou vítima de um dos mais espetaculares atos de violação da liberdade de imprensa da história recente: Roman Protasevich, editor do canal de oposição Nexta, foi preso por forças de seu país a bordo do avião, cujo piloto foi obrigado a fazer um pouso de emergência na capital, Minsk.
Desde 23 de maio de 2021 a situação da imprensa só piorou no país governado por Aleksander Lukashenko, aliado de Vladimir Putin e apelidado de “o último ditador da Europa”: pelo menos 27 jornalistas estão detidos de forma considerada arbitrária por entidades de defesa da liberdade de imprensa.
Protasevich continua em prisão domiciliar, incomunicável, aguardando julgamento. Na semana passada, sua namorada, Sofia Sapega, que é russa, foi condenada a seis anos de prisão. E dois outros jornalistas do Nexta, Stepan Putilo e Jan Rudik, receberam novas acusações.
Jornalista preso comandava canal de oposição a partir da Polônia
A Bielorrússia ocupa a 153ª posição entre 180 países no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. A organização aponta o país como o perigoso da Europa para os jornalistas até a invasão da Ucrânia pela Rússia, devido a perseguições aos meios de comunicação independentes e a repórteres.
A história do jornalista preso dentro do avião ganhou atenção do mundo, pela ousadia. Ele havia fundado o Nexta junto com Putilo, inicialmente no YouTube. Depois o canal migrou para o Telegram e era comandado a partir da Polônia, para contornar a falta de liberdade de imprensa em Belarus.
O grupo de mensagens do veículo ajudou na mobilização de grandes protestos após a reeleição do presidente Alexander Lukashenko para um sexto mandato, em 2020.
Em 23 de maio de 2021, Protasevich e Sapega foram capturados a bordo do avião que os levava da Grécia para a Lituânia, obrigado pelas autoridades bielorrussas a fazer um pouso forçado em Minsk, sob a falsa alegação de que havia uma bomba a bordo.
No início de maio, a namorada do jornalista Roman Protasevich recebeu uma pena de seis anos pela justiça da Bielorrússia por “incitar a inimizade social e a discórdia”.
O julgamento da russa de 24 anos durou seis semanas a porta fechadas, de acordo com o grupo de direitos humanos Vyasna.
Ela foi acusada de ser uma das administradoras do canal Nexta Telegram, que usava o aplicativo de mensagens para divulgar notícias sobre a repressão do país.
Sua condenação, segundo o tribunal, também se deu pela publicação de dados pessoais das forças de segurança bielorrussas no aplicativo. Antes, as autoridades da Bielorrússia já a tinham acusado de organizar tumultos.
“Sinto muito por Sofia e sua família. Ninguém deve sofrer com a ditadura”, escreveu no Twitter a líder da oposição do país, Sviatlana Tsikhanouskaya, após o veredito em 6 de maio.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que Sapega receberá assistência, mas se recusou a comentar a sentença em si a jornalistas de Belarus.
“Ela é cidadã da Rússia, então, de qualquer forma, por meio de nossos diplomatas e outros canais, continuaremos a proteger seus interesses legítimos”
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Jornalista continua preso sem julgamento
As autoridades da Bielorrússia afirmam que Roman Protasevich segue em prisão domiciliar em local não divulgado desde junho de 2021 enquanto aguarda julgamento. Entidades e ativistas apontam que o status da investigação contra ele não está claro.
Antes de ser preso, o jornalista e ativista da oposição estava entre as pessoas “mais procuradas” de Belarus.
Por ocasião do primeiro ano de sua prisão, a organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) fez uma campanha destacando que, no total, 27 profissionais da mídia estão presos no país.
“[A prisão de Protasevich simboliza] a guerra que o presidente Lukashenko está travando contra o jornalismo, que entrou em uma fase de pesadelo”, disse Christophe Deloire, secretário-geral da RSF.
A ONG acredita que o jornalista deve ser acusado de organização de tumultos, preparação de ações que violam grosseiramente a ordem pública ou participação ativa nelas e incitação ao ódio.
#BELARUS: The 23rd of May will mark the anniversary of the hijacking of a plane by Alexander Loukachenko’s government targeting journalist Raman Pratasevich.
RSF unveils 27 portraits of jailed journalists in Belarus and calls for their liberation. pic.twitter.com/BAOCu8abmJ
— RSF (@RSF_inter) May 20, 2022
Colegas do jornalistas preso recebem novas acusações
Na sexta-feira (20), dias antes de Roman Protasevich completar um ano preso, outros dois jornalistas do Nexta Telegram receberam novas acusações da justiça bielorrussa.
O cofundador do canal Stepan Putilo e o jornalista Jan Rudik, ambos exilados, foram acusados de liderar uma “organização terrorista” e tentar “desestabilizar” a situação no país, informou a agência de notícias estatal Belta.
Putilo vive atualmente na capital da Polônia, Varsóvia, segundo informações da rede Al Jazeera. Ele já enfrenta outras acusações criminais, como incitação ao ódio social e traição, e está em listas internacionais de procurados na Bielorrússia e na Rússia.
Em 2020, o canal Nexta foi classificado como “organização terrorista” e tanto Putilo quanto Rudik agora foram acusados de dirigi-la:
“Desde 2020, os réus usaram seus recursos de informação para desestabilizar a situação na Bielorrússia e radicalizar os chamados protestos.”
“Os terroristas pediram repetidamente para incitar o ódio e a discórdia social, bloquear estradas e coordenar distúrbios nas ruas, cometer ataques terroristas na ferrovia e sabotagem em empresas que poderiam levar a desastres”.
Na quarta-feira (18), Belarus, único país europeu que ainda realiza execuções, introduziu a pena de morte para tentativas de realizar atos de “terrorismo” — pena que pode ser atribuída aos três jornalistas durante julgamento a ser marcado.
Nexta, de paródias musicais a fonte de informação na crise de Belarus
O Nexta surgiu no YouTube há sete anos, criado pelo então adolescente Stepan Putilo, para veicular paródias musicais de cunho político. Hoje são três canais − Nexta, Nexta Live e Luxta.
O sistema é baseado na Polônia, e aproveitou a característica de transmissão segura de informações sob anonimato do Telegram para transformar-se na principal fonte de noticias no país desde que a conexão de internet foi severamente interrompida após as eleições de 9 de agosto de 2020, vencidas pela oposição.
O resultado não foi aceito por Lukashenko, no poder desde 1994, dando início a uma série de conflitos.
A crise política ajudou a elevar o número de seguidores, de 300 mil para mais de dois milhões em apenas dois meses, juntando os três canais. Não é pouco em um país com cerca de dez milhões de habitantes.
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Em entrevista ao Euronews em 2020, Roman Protasevich descreveu o canal como “uma organização de mídia descentralizada do século 21, usando vários sites sem um site ou página central”.
Nexta significa “alguém” no idioma local. Segundo Protasevich, o nome reflete a ideia de uma rede de milhares de bielorrussos compartilhando notícias, contando histórias que não seriam veiculadas na mídia estatal ou mesmo em veículos independentes, por temor de represálias.
Ele assegurou receber documentos e informações de dentro do próprio governo, transmitidos por funcionários de alto escalão insatisfeitos com os rumos políticos.
O canal tornou-se uma ferramenta de mobilização para os protestos. Passou a compartilhar mapas mostrando onde a polícia estava, indicando locais para manifestantes se refugiarem, fazendo contatos com ativistas e advogados especializados em direitos humanos e orientando sobre como contornar os bloqueios da internet impostos pelo governo.
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