Londres –  Dois dias antes da saída do presidente filipino Rodrigo Duterte do cargo, o site de notícias Rappler, comandado pela jornalista detentora do Nobel da Paz Maria Ressa, recebeu da Comissão de Valores Mobiliários (SEC, na sigla em inglês) uma notificação de revogação de sua licença para funcionar. 

Ressa, que dividiu o prêmio com o russo Dmitry Muratov, recusa-se a fechar o site e anunciou a intenção de brigar até o fim para manter o veículo crítico ao governo em funcionamento, com uma apelação à Suprema Corte do país e resistência a um possível bloqueio dos escritórios. 

Muratov não teve a mesma sorte. Ele foi obrigado a fechar o Novaya Gazeta em março, depois de receber notificações do governo russo em reação à cobertura da guerra na Ucrânia que poderiam levar à cassação definitiva da licença. 

Nobel não reduziu a pressão sobre a jornalista filipina 

O motivo da ordem de fechamento não está diretamente relacionado ao conteúdo veiculado pelo Rappler, como na Rússia, e sim a um processo em que o site é acusado de violar as regras sobre propriedade estrangeira de mídia.  

A Rappler Holdings emitiu títulos (Philippine Depositary Receipts, PDRs) para o investidor estrangeiro Omidyar, e isso seria uma infração ao dispositivo constitucional que determina zero controle estrangeiro em empresas jornalísticas.  

Uma primeira decisão de revogar a licença do Rappler como parte desse processo havia sido emitida em 2018 e vem sendo contestada. O Omidyar doou seus PDRs aos gestores filipinos do Rappler, o que no entendimento da equipe jurídica do site, teria eliminado uma possível infração. 

No entanto, o processo continuou tramitando. No despacho de 28 de junho, a SEC disse que “o pedido agora é justificado considerando que a decisão de 2018 do Tribunal de Apelações já atingiu a finalização” e orientou seu departamento de registro e monitoramento de empresas a efetuar a revogação dos certificados de constituição do Rappler.

Na nota em que anunciou o recebimento da ordem, o Rappler classifica a decisão como  “altamente irregular”. 

“Temos direito a recursos legais até o mais alto tribunal do país. E seguiremos com nossas atividades normais,  pois, em nossa opinião, a ordem não é passível de execução imediata sem a aprovação do tribunal”, disse o Rappler em seu comunicado na quarta-feira, 29 de junho.

Assédio jurídico para silenciar jornalistas críticos 

O chamado assédio jurídico tem sido uma das principais armas de governos autoritários ou líderes políticos para tentar calar veículos de imprensa ou jornalistas individualmente. A administração de Rodrigo Duterte nas Filipinas se tornou um exemplo da prática. 

Há duas semanas o governo já tinha anunciado bloqueio de outros sites, por suposta “afiliação comunista”. 

Maria Ressa é uma das principais vítimas desse tipo de ação. Crítica feroz da violenta política antidrogas do governo Duterte, ela se tornou alvo de uma  uma série de acusações criminais, investigações e ataques online contra ela e contra o veículo que ajudou a fundar.

Por isso se tornou conhecida em todo o mundo como uma das jornalistas mais perseguidas da atualidade e acabou recebendo o Nobel da Paz.

Mas o reconhecimento não reduziu a perseguição, embora alguns processos movidos por indivíduos tenham sido retirados.

Em uma entrevista coletiva nesta quarta-feira (2) em Manila, o principal consultor jurídico do Rapper, Francis Lim, disse que a legislação permite apelar para reverter a ordem da CVM.

Lim anunciou que o Rappler sustentará que os PDRs não violaram a Constituição.

“Há uma diferença muito grande entre recibos de depósito e ações. Essa é uma área de discórdia e esperamos que, devido à importância deste caso e suas implicações na liberdade de imprensa,  a Suprema Corte finalmente resolva essa questão muito importante”, disse Lim.

Ele disse entender que a comissão não poderia obrigar o fechamento enquanto um recurso é analisado. Mas não descartou a possibilidade de que a CVM filipina bloqueie fisicamente os escritórios do Rappler. 

“Tentamos ao máximo nos preparar para todos os cenários, incluindo o pior cenário”, disse Lim.

Ele acrescentou que se o bloqueio for adiante enquanto o Rappler aguarda o exame do recurso pela Suprema Corte,  a defesa tentará obter uma ordem de restrição temporária ou um mandado de segurança preliminar.

“Temos planos de A a Z. Nosso objetivo é continuar, não vamos abrir mão de nossos direitos voluntariamente, e realmente não deveríamos. Com certeza continuaremos operando normalmente”, disse a CEO da Rappler, Maria Ressa. 

Rodrigo Duterte, inimigo de jornalistas e da imprensa livre 

O presidente que está deixando o cargo nas Filipinas, Rodrigo Duterte, é apontado como um dos predadores da liberdade de imprensa no mundo pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), em uma lista divulgada em 2021 que inclui também o presidente Jair Bolsonaro. 

No ranking anual de liberdade de imprensa da RSF, o país figura em 147º entre 180 países. A entidade destaca os ataques verbais e assédio judicial contra qualquer veículo de imprensa considerado crítico ao governo, como o da jornalista Nobel da Paz Maria Ressa. 

O relatório aponta o uso de leis relativas à propriedade e tributação de empresas de mídia como principais instrumentos para perseguir a imprensa que se opõe a atos do governo, incluindo a política de drogas . 

Outro instrumento é o chamado red- tagging, catalogando como comunistas jornalistas que não seguem a linha do governo. 

Rodrigo Duterte deixa a presidência nesta quinta-feira (30), mas sua filha Sara será a nova vice-presidente do país. Por isso, não é provável que suas políticas, incluindo as ameaças à liberdade de imprensa, sejam deixadas para trás pela nova administração do país. 

O presidente eleito é Ferdinand Marcos Jr, de 64 anos, filho do ditador que governou as Filipinas com mão de ferro há 36 anos.  

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