Londres – Ao mesmo tempo em que a tecnologia e as redes sociais democratizaram o acesso à informação e facilitaram a livre expressão, o declínio da democracia no mundo faz com que somente 15% — ou 1 em cada 7 — das pessoas do planeta desfrutem de liberdade de expressão, segundo relatório da ONG britânica Artigo 19 divulgado nesta quinta-feira em Londres, que destaca o Brasil como um dos países em situação problemática.
“Da Rússia a Mianmar, da Etiópia ao Brasil, governantes autoritários como Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Narendra Modi continuam a aumentar o controle sobre o que vemos, ouvimos e dizemos”, alerta o relatório, publicado simultaneamente ao índice regional da Sociedade Interamericana de Imprensa, que apontou o Brasil como um dos países em que a liberdade é uma das mais restritas nas Américas.
Globalmente, os dados do relatório mostram que a liberdade de expressão diminuiu significativamente desde 2011. Segundo o documento, 80% da população global vive com menos liberdade de expressão do que há uma década.
Autocracias fazem liberdade de expressão cair globalmente
O Relatório Global de Expressão analisa anualmente a liberdade de expressão e informação em todo em 161 países com base em 25 indicadores. A pontuação classifica as nações em cinco categorias: livre (verde); menos restrita (amarelo); restrita (laranja); altamente restrita (vermelho) e em crise (roxo), seguindo uma escala de 0 a 100.
A pontuação global diminuiu na última década, de 56 (2011) para 50 (2021) pontos. E todas as pontuações regionais estão caindo ou estagnadas.Com 50 pontos, o Brasil teve a liberdade de expressão avaliada como “restrita”.
No ranking total, o Brasil ficou na 89ª posição entre 161 países. Os primeiros lugares foram ocupados por Dinamarca (95 pontos), Suíça (95) e Suécia (94).
O relatório deste ano aponta que 35% da população global – 2,7 bilhões de pessoas – agora vivem em um país em crise de liberdade de expressão. Atualmente, essa é a maior categoria, tanto em população quanto em número de países – são 40 nações classificadas assim.
Cinco novos países entraram na faixa classificada como ‘em crise, este ano: Mianmar, Afeganistão, Sudão, Hong Kong e Chade — todos com governos autocráticos ou altamente repressores. Apenas 15% da população mundial vive em países que desfrutam de plena liberdade de expressão.
O Brasil foi o terceiro que mais recuou na liberdade de expressão em 10 anos. Saiu de 88 pontos (2011) para 50 (2021), uma queda de 38 pontos e que fez a classificação mudar de “aberta” para “restrita”. O país ficou atrás somente de Hong Kong (-58 pontos) e Afeganistão (-40 pontos).
As últimas posições foram preenchidas por Coreia do Norte (0), Turcomenistão (1) e Síria (1).
“As liberdades estão mais precárias do que nunca, e as pontuações estão despencando a taxas mais altas do que nunca”, destaca o documento.
Muitos dos países que tinham feito avanços na última década regrediram, como Sudão, Mianmar, Afeganistão e Sri Lanka.
“Todos são países que o mundo olhou ao mesmo tempo como nações democratizantes e faróis de esperança, para depois terem as liberdades esmagadas e o respeito pelos direitos humanos praticamente extintos.”
O relatório destaca que, com cinco golpes de estado ocorridos no mundo em 2021 (mais outro em Burkina Faso em janeiro de 2022), líderes autocráticos agem contra a democracia de maneiras cada vez mais ousadas, tanto nas tomadas de poder quanto dentro do governo democrático, corroendo sistemas e instituições por dentro.
“Mudanças não democráticas no poder raramente são um bom presságio para a liberdade de expressão: a violência com que os regimes atacam imediatamente jornalistas, ativistas e populações mostra que os regimes repressivos – milícias e militares – estão cientes do poder da informação e da expressão.”
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A Artigo 19 destaca que a militarização é uma tendência mundial na supressão da liberdade de expressão, com muitos países colocando militares em cargos importantes durante pandemia da covid-19.
“As estruturas militares raramente são um bom sinal para a liberdade de expressão.
Militares são estritamente hierárquicos, autoritários e não democráticos, além de profundamente patriarcais, excluindo mulheres e pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer e intersexuais (LGBTQI+).
(…) Muitos militares que recuperaram o poder nos últimos anos têm histórico de violência, repressão e abusos dos direitos humanos, incluindo crimes de guerra e genocídio.”
A supressão da liberdade de expressão não é apenas um sintoma de autocracia: ela cria o ambiente para que líderes autocráticos despontem, avalia a ONG.
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Sob Bolsonaro, Brasil viu liberdade de expressão despencar
Conflitos, invasões e golpes não são os únicos fatores que matam a liberdade de expressão. E o Brasil é um exemplo disso: o país testemunhou uma das deteriorações mais chocantes do mundo na última década, tudo sob a influência de um líder democraticamente eleito, destaca o relatório.
“O assédio de Bolsonaro e a estigmatização da mídia andam de mãos dadas com ataques persistentes ao judiciário e questionamentos sobre a integridade do sistema eleitoral.”
Para a organização, os ataques a jornalistas e profissionais de imprensa, “assustadoramente comuns nos últimos anos”, puxaram os dados do Brasil para baixo.
“Em 2021, o número de ataques a jornalistas e meios de comunicação foi o maior desde a década de 1990, com 430 ataques no ano passado.
O aumento das violações à liberdade de imprensa no Brasil mostrou claras correlações tanto com as pontuações quanto com o número de ataques, que subiram mais de 50% no ano da eleição de Bolsonaro.”
O relatório destaca que o trabalho da imprensa brasileira foi dificultado desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, já os profissionais foram alvos de assédios online do chefe do Executivo e de seus filhos.
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Somado a isso, a desinformação durante a pandemia também posicionou mal o Brasil no índice. O país viveu um “furacão de desinformação” controlado por um presidente com “total desrespeito aos fatos científicos”, segundo a ONG.
“Embora a queda na pontuação do Brasil tenha se estabilizado desde 2019, as eleições presidenciais de 2022 serão um teste para a democracia brasileira.
No momento em que Bolsonaro continua fazendo declarações como ‘Só Deus pode me tirar da Presidência’ e comentaristas fazem comparações com Trump e a insurreição no Capitólio, 2022 pode revelar o quanto [da liberdade de expressão] foi erodida durante o mandato de Jair Bolsonaro.”
Olhada para o continente americano como um todo, 48% das pessoas desta região vivem em ambientes com liberdade de expressão (dado impulsionado pelas populações dos EUA e Canadá).
Mas, assim como no Brasil, as autocracias estão aprofundando a crise em outros lugares como Nicarágua, Venezuela e Cuba.
Na América Latina, os desafios são os níveis extremos de violência física e ameaça para ativistas e comunicadores: mais de 70% dos assassinatos de defensores de direitos humanos ocorreram nas Américas. Os três países com mais assassinatos estavam todos nessa região: Colômbia, México e Brasil.
O relatório pode ser acessado na íntegra neste link.
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