Londres – A ideia de demonstrar apoio à Ucrânia em shows musicais, que se tornou popular no mundo depois da invasão russa ao país, custará caro para os artistas que ousarem fazer isso em apresentações dentro da Rússia. 

Empresas que organizam shows e eventos passaram a incluir nos contratos a proibição de declarações políticas ou de exibição de símbolos que “possam conter informações falsas sobre a operação militar na Ucrânia”, valendo multa para os infratores. 

A revelação foi feita pelo site de notícias russo RBK, que diz ter visto cópias de contratos e conversado com promotores culturais. Uma lista negra produzida pelo governo estabelece os artistas que não devem ser convidados para shows, com vários tendo as apresentações canceladas. 

Defesa da Ucrânia vira risco para produtores na Rússia

A Rússia tem tentado fechar o cerco a manifestações contrárias à guerra principalmente com censura à imprensa e a ativistas. A maioria dos veículos independentes foi obrigada a suspender as operações sobretudo depois da lei de fake news promulgada em março.

Pessoas comuns, blogueiros, jornalistas e políticos foram acusados de disseminar o que o governo considera desinformação, incluindo chamar o conflito de guerra.

Mas a adoção da cláusula em contratos de eventos culturais não foi determinada por lei. As restrições impostas pelos produtores foram confirmadas ao RBK por Eduard Ratnikov, diretor geral da agência TCI, que já levou ao país nomes famosos como Ozzy Osbourne. 

Outro promotor de eventos, Sergey Babich, diretor do Colisium International Music Industry Forum, também informou que as restrições passaram a ser adotadas. 

Contratos vetam qualquer tipo de apoio à Ucrânia 

Um dos contratos vistos pelo RBK tem uma cláusula segundo a qual o artista “compromete-se a evitar quaisquer assuntos políticos durante o concerto”. 

O texto diz ainda que ele não tem o direito de “divulgar informações falsas sobre o andamento da operação militar especial na Ucrânia por qualquer meio, incluindo meios audiovisuais”. 

Além disso, o artista não pode usar “símbolos de estado da Ucrânia, ou semelhantes a ele, bem como outros símbolos, a fim de formar conclusões incorretas sobre as metas e objetivos das Forças Armadas da Federação Russa no território da Ucrânia, qualquer descrédito da Federação Russa, órgãos estatais da Federação Russa, incluindo as Forças Armadas da Federação Russa”.

Segundo o RBK; os  contratos com alguns artistas podem incluir a proibição de declarações políticas não apenas diretamente do palco, mas também como parte da campanha promocional do show ou turnê, incluindo postagens em redes sociais, comunicação com fãs e entrevistas à mídia. 

Se essas condições forem violadas e o show for adiado ou cancelado por ordem do governo, o artista fica obrigado a ressarcir os organizadores e pagar uma multa de 500 mil rublos (R$ 46 mil reais). 

Cancelamentos voluntarios e forçados 

Desde o início da guerra, vários artistas cancelaram apresentações no país, em protesto ou por dificuldades logísticas, incluindo grupos locais e internacionais.

Um deles foi Oxxxymiron, estrela do hip hop e um dos artistas pop mais influentes da Rússia. Ao desistir das apresentações programadas para Moscou e São Petersburgo, as duas maiores cidades do país, ele disse: 

“Não posso entreter as pessoas quando mísseis russos estão caindo sobre a Ucrânia, quando moradores de Kiev são forçados a se esconder em porões e no metrô, enquanto as pessoas estão morrendo.”

Entre as estrelas internacionais que também recuaram está Iggy Pop, que tocaria no país em 10 de julho. Ao anunciar a decisão, ele declarou sua posição contrária à guerra com a Ucrânia: 

“À luz dos acontecimentos atuais, isso é necessário. Nossos pensamentos estão com os ucranianos e todas as pessoas corajosas que se opõem a essa violência e buscam a paz.”

E usou a hashtag #StandingWithUkraine.”

 

Em outros casos, as apresentações estão sendo canceladas diante de pressão governamental. 

O site russo Fontanka publicou uma lista de músicos russos cujas apresentações foram consideradas indesejáveis ​​pelas autoridades, que teria sido distribuída entre promotores musicais. 

Um dos organizadores de concertos em São Petersburgo confirmou à publicação que tal lista existe, mas “ela muda, é complementada todos os dias, e cada produtor sabe qual dos artistas é indesejável mesmo sem lista”.

Fazem parte dos “cancelados” os grupos DDT, Aquarium, Bi-2, Time Machine, os rappers Noize MC, Oksimiron, Face, Casta e Anacondaz e os cantores Zemfira, Manizha, Monetochka, Grechka e Dora, que assumiram posições de apoio ao lado da Ucrânia na guerra. 

O governo negou a existência da lista negra, mas os cancelamentos se sucedem. 

O RBK relatou que em 26 de  junho, a casa de shows Glavclub anunciou o cancelamento da apresentação do grupo Anacondaz como parte do festival PunkRupor, bem como os shows do grupo Accident em 3 de julho e da cantora Manizha em 8 de julho depois de”chamadas de várias autoridades” e inspeções não programadas da agência de defesa do consumidor Rospotrebnadzor e do Ministério de Situações de Emergência.

Em junho, os organizadores do festival Stereooleto informaram que Manizha, embaixadora da Boa Vontade da Unesco e uma celebridade na cena pop russa, que representou o país no festival Eurovision de 2021, não se apresentaria no evento dali a alguns dias. 

No comunicado, os organizadores alegaram “motivos alheios ao nosso controle” e sugeriram que o cancelamento teria sido de comum acordo.

A cantora passou a ser perseguida depois que condenou a guerra em um post no Instagram, logo após a invasão. 

Enquanto isso, fora da Rússia o apoio à Ucrânia no meio artístico e cultural entrou na agenda de artistas e e na programação de grandes concertos, sem qualquer restrição. 

O presidente do país Volodymyr Zelensky, apareceu em vídeo no festival britânico de Glastonbury, em junho, com uma mensagem pedindo que o mundo falasse a verdade sobre a guerra. Paul McCartney exibiu uma bandeira do país no festival. 

Uma das atrações escaladas no evento foi a banda ucraniana Kalush Orchestra, que venceu o festival de música pop Eurovision de 2022 com a maior votação popular da história.  

Pelas regras, a Ucrânia teria o direito de sediar a edição de 2023, mas questões de segurança devem impedir que isso ocorra.

A final deve ser realizada no Reino Unido, cujo representante, Sam Ryder, ficou em segundo lugar no concurso. 

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