Dois manuais que orientam como as mídias estatal e pró-governo devem noticiar a “operação especial” na Ucrânia foram criados na Rússia para garantir a difusão da narrativa do Kremlin sobre a guerra.

Desde o início da invasão, Vladimir Putin adotou uma série de medidas que alinham a divulgação de notícias sobre o conflito com a “versão oficial” do governo e impedem a livre circulação de informações na imprensa.

Agora, novos documentos a que o site Meduza teve acesso mostram direcionamentos mais amplos sobre como os veículos aliados devem relacionar a atual ofensiva com grandes eventos históricos russos.

‘Ocidente coletivo’ é inimigo número 1

Rotulado como “agente estrangeiro”, o Meduza é um portal de jornalismo independente que opera fora da Rússia, com a redação em Riga, na Letônia. Ainda assim é constantemente perseguido pelo Kremlin, que bloqueou seu acesso no território. 

Suas publicações desafiam a propaganda do governo sobre a “operação especial” — nomenclatura adotada com a proibição do uso dos termos “guerra” e “invasão” para a mídia se referir ao conflito na Ucrânia.

Os manuais obtidos pelo Meduza foram preparados pela Administração Presidencial (AP) do país e enviados em julho a chefes da mídia estatal e pró-governo e a políticos da Rússia.

São muito mais detalhados do que a simples proibição de palavras, recorrendo a eventos históricos e teorias conspiratórias para justificar o conflito as críticas sobre atrocidades cometidas pelos soldados. 

Os documentos, que não são assinados, traçam paralelos entre a guerra atual, a conversão do território russo ao cristianismo ortodoxo (chamado de “batismo da Rússia”) e a famosa Batalha de Neva, ocorrida no século XIII.

O conflito foi comandado pelo príncipe Alexandre Nevsky, figura lendária por suas vitórias que rechaçaram invasões. O nome Neva vem de Nevsky, e ele se tornou santo da igreja ortodoxa russa. 

Segundo os materiais do governo, os dois eventos históricos e o conflito com a Ucrânia são “muito semelhantes em suas essências”.

Assim, a invasão à Ucrânia se justifica pelas ações do “Ocidente coletivo”, que “ataca a Rússia” há quase mil anos para dividi-la, apropriar-se de seus recursos e “destruir a fé ortodoxa”.

Os autores do manuais, que não são identificados, explicam que o “Ocidente coletivo” foi representado ao longo da história por várias instituições ou países: a Ordem Teutônica, a Suécia, a Comunidade Britânica das Nações (que inclui potências como o Reino Unido, o Canadá e a Austrália), o império de Napoleão, o Terceiro Reich de Hitler e a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). 

Guerra na Ucrânia é ‘luta contra os ateus’

Invocando fortemente a religião, o guia do Kremlin para a mídia estatal russa diz que a guerra na Ucrânia tem como objetivo “lutar contra os ateus”, descritos como “estupradores, ladrões e assassinos”, e é isso que a mídia estatal deve veicular para a população da Rússia.

Trecho de um dos documentos obtidos pelo Meduza diz:

“A fé ortodoxa ensina compaixão, amor pelo próximo e tolerância pelos outros. Esses valores formaram a base da civilização russa e permitiram à Rússia unir centenas de povos.

Hoje, representantes de todos os povos da Rússia se uniram mais uma vez contra os ateus e a defesa dos valores tradicionais e o direito de seus filhos viverem de acordo com eles.

O manual também afirma que, assim como no “batismo da Rússia”, a guerra na Ucrânia estabelece as “fundações do Estado” do país — bem como “as bases do desenvolvimento da Rússia nos próximos séculos”.

Os autores asseguram que isso se deve à “união da sociedade” em torno do exército e ao “curso estratégico do presidente”, fazendo a Rússia “voltar a ser capaz de cumprir sua missão de proteger os oprimidos”.

O manual Kremlin pede à mídia estatal russa para  culpar o “ocidente coletivo”, que confia na “própria exclusividade”, bem como na “inferioridade” dos ortodoxos. 

Os autores recomendam falar sobre as causas da guerra da seguinte forma:

“O conflito na Ucrânia foi provocado pelas mãos de países ocidentais, que enviaram armas para a Ucrânia.

O objetivo estratégico do Ocidente coletivo por vários séculos em relação à Rússia não mudou — é a contenção, enfraquecimento, desmembramento e destruição completa da Rússia.”

No documento visto pelo Meduza, um dos objetivos da “operação especial” é proclamado como “a luta contra os ateus”que “não acreditam em nada – e acreditam que isso os liberta de quaisquer obrigações morais para com outras pessoas.”

O Kremlin propõe chamar os militares ucranianos, apelidados de “ukronazis”, de pessoas “sem Deus” que usam mulheres e crianças como “escudos humanos”:

“Para os ukronazis, não há moralidade, eles não raciocinam e são verdadeiros ateus. Eles não têm medo do castigo de Deus por suas atrocidades.

Muitos dos ukronazis são satanistas abertos e seguidores de cultos misantrópicos.”

Mídia estatal propaga tese do ‘ataque preventivo’

Os documentos obtidos pelo Meduza mostram que o Kremlin orienta a mídia estatal e pró-governo do país a argumentar que a guerra na Ucrânia é um “ataque preventivo”. 

Uma das justificativas para isso seria, novamente, que o “Ocidente coletivo” quer há muitos séculos destruir a Rússia.

O guia para a mídia estatal russa afirma que todos que fazem parte da lista, de Napoleão à OTAN, adotavam ou adotam a mesma tática, a de se voltar contra a Rússia. 

E traça uma analogia direta com o “Ocidente coletivo”, que “capacitou” a Ucrânia com armas e implantou ali uma “rede de biolaboratórios”, uma tese de propaganda que vem sendo largamente difundida desde o início do conflito. 

Mas para o manual, trata-se de uma luta do mal contra o bem, sendo o bem o lado da Rússia, que ao final vai vencer.

O texto diz que todos os ataques ocidentais terminam da mesma maneira:

“A sociedade se une em torno do líder nacional e, demonstrando coragem e heroísmo no campo de batalha, repele os invasores”. 

O Kremlin “recomenda” à mídia pró-governo e os políticos sistêmicos ressaltarem que isso supostamente aconteceu tanto após a vitória na Batalha do Neva quanto após o início da guerra na Ucrânia, embora o conflito esteja longe do fim. 

O Kremlin observa que agora o Ocidente quer destruir a Rússia por causa dos recursos de que necessita. Mas esses próprios recursos mudaram, observam os autores do manual. Se antes era a própria população, agora o Ocidente precisa de minerais:

“A sociedade de consumo que se desenvolveu no Ocidente requer muitos recursos. O Ocidente esgotou seus próprios recursos há vários séculos. Esta foi a causa do colonialismo e do neocolonialismo.

O Ocidente diz de forma direta que a Rússia tem muitos recursos para um país e, portanto, deve ser dividida.”

Enaltecendo a figura de Putin, os manuais para a mídia estatal russa relacionam ainda o atual conflito com a Segunda Guerra, reforçando a tese de ‘ataque preventivo’:

“Os líderes da Rússia e pessoalmente Vladimir Putin não permitiram um ataque ao país.

Foi decidido iniciar uma SVO [operação militar especial], que possibilitou evitar a repetição do dia 22 de junho de 1941, com a invasão das tropas nazistas à Rússia.”

A força da verdade 

Um dos capítulos do documento intitula-se “Força na Verdade!”. Essas palavras são atribuídas a Alexander Nevsky, mas segundo o site Meduza, os registros históricos afirmam que o príncipe proferiu uma expressão completamente diferente antes da batalha:

“Deus não está no poder, mas na verdade” (e essa citação também está no texto do Kremlin).

Este é o argumento para o manual sugerir como os soldados russos devem ser tratados na mídia estatal. 

“Havia verdade por trás dos soldados russos – eles defenderam sua casa e, portanto, a vitória não poderia deixar de ser nossa”, escrevem os autores do documento.

Os parágrafos sobre a “operação especial” não dizem nada sobre a proteção da casa, mas é mencionado que os soldados russos também estão “confiantes de que estão certos, porque continuam o trabalho de seus avós e bisavôs, que exterminaram o Nazismo.”

Mídia estatal russa já incorporou narrativas 

Segundo o Meduza, as orientações do Kremlin são amplamente difundidas pela mídia estatal russa e por veículos aliados ao governo — algo que, segundo o veículo, já ocorria antes mesmo da divulgação dos manuais, que pode ter sido feitos para formalizar e dar mais subsídios. 

No início de junho, a agência de notícias estatal RIA Novosti publicou uma matéria intitulada: “O satanismo e o ocultismo se tornaram a ideologia dos batalhões nacionais ucranianos.”

Outro site pró-Putin, o Gazeta.ru divulgou o texto “O Batismo da Rússia e uma operação especial na Ucrânia: o que há em comum?” com parágrafos inteiros tirados diretamente dos manuais do governo.

Manual mídia estatal Rússia guerra
Reprodução Gazeta.ru

Um texto semelhante apareceu no site governista FederalPress. E outro, o Regnum, fez uma reportagem sobre as semelhanças entre a Batalha do Neva e a “operação especial” na Ucrânia.

Segundo duas fontes ouvidos pelo Meduza ligadas à Administração Presidencial, o Kremlin está agora tentando encontrar formas de explicar à população as razões da continuidade da guerra e o manual para orientar narrativas para a mídia estatal russa é parte deste esforço.

“Quanto mais dura a operação, mais perguntas as pessoas têm: por que isso está acontecendo? qual o objetivo?”.

n