MediaTalks em UOL

‘Luta contra ateus’ e ‘ataque preventivo’: Rússia faz guia de narrativas para mídia estatal defender guerra

mídia estatal Rússia, RT

Repórter Roman Kosarev, da emissora estatal RT, durante entrada ao vivo no dia 1º de agosto de 2022 (Foto: Reprodução/RT)

Dois manuais que orientam como as mídias estatal e pró-governo devem noticiar a “operação especial” na Ucrânia foram criados na Rússia para garantir a difusão da narrativa do Kremlin sobre a guerra.

Desde o início da invasão, Vladimir Putin adotou uma série de medidas que alinham a divulgação de notícias sobre o conflito com a “versão oficial” do governo e impedem a livre circulação de informações na imprensa.

Agora, novos documentos a que o site Meduza teve acesso mostram direcionamentos mais amplos sobre como os veículos aliados devem relacionar a atual ofensiva com grandes eventos históricos russos.

‘Ocidente coletivo’ é inimigo número 1

Rotulado como “agente estrangeiro”, o Meduza é um portal de jornalismo independente que opera fora da Rússia, com a redação em Riga, na Letônia. Ainda assim é constantemente perseguido pelo Kremlin, que bloqueou seu acesso no território. 

Suas publicações desafiam a propaganda do governo sobre a “operação especial” — nomenclatura adotada com a proibição do uso dos termos “guerra” e “invasão” para a mídia se referir ao conflito na Ucrânia.

Os manuais obtidos pelo Meduza foram preparados pela Administração Presidencial (AP) do país e enviados em julho a chefes da mídia estatal e pró-governo e a políticos da Rússia.

São muito mais detalhados do que a simples proibição de palavras, recorrendo a eventos históricos e teorias conspiratórias para justificar o conflito as críticas sobre atrocidades cometidas pelos soldados. 

Os documentos, que não são assinados, traçam paralelos entre a guerra atual, a conversão do território russo ao cristianismo ortodoxo (chamado de “batismo da Rússia”) e a famosa Batalha de Neva, ocorrida no século XIII.

O conflito foi comandado pelo príncipe Alexandre Nevsky, figura lendária por suas vitórias que rechaçaram invasões. O nome Neva vem de Nevsky, e ele se tornou santo da igreja ortodoxa russa. 

Segundo os materiais do governo, os dois eventos históricos e o conflito com a Ucrânia são “muito semelhantes em suas essências”.

Assim, a invasão à Ucrânia se justifica pelas ações do “Ocidente coletivo”, que “ataca a Rússia” há quase mil anos para dividi-la, apropriar-se de seus recursos e “destruir a fé ortodoxa”.

Os autores do manuais, que não são identificados, explicam que o “Ocidente coletivo” foi representado ao longo da história por várias instituições ou países: a Ordem Teutônica, a Suécia, a Comunidade Britânica das Nações (que inclui potências como o Reino Unido, o Canadá e a Austrália), o império de Napoleão, o Terceiro Reich de Hitler e a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). 

Guerra na Ucrânia é ‘luta contra os ateus’

Invocando fortemente a religião, o guia do Kremlin para a mídia estatal russa diz que a guerra na Ucrânia tem como objetivo “lutar contra os ateus”, descritos como “estupradores, ladrões e assassinos”, e é isso que a mídia estatal deve veicular para a população da Rússia.

Trecho de um dos documentos obtidos pelo Meduza diz:

“A fé ortodoxa ensina compaixão, amor pelo próximo e tolerância pelos outros. Esses valores formaram a base da civilização russa e permitiram à Rússia unir centenas de povos.

Hoje, representantes de todos os povos da Rússia se uniram mais uma vez contra os ateus e a defesa dos valores tradicionais e o direito de seus filhos viverem de acordo com eles.

O manual também afirma que, assim como no “batismo da Rússia”, a guerra na Ucrânia estabelece as “fundações do Estado” do país — bem como “as bases do desenvolvimento da Rússia nos próximos séculos”.

Os autores asseguram que isso se deve à “união da sociedade” em torno do exército e ao “curso estratégico do presidente”, fazendo a Rússia “voltar a ser capaz de cumprir sua missão de proteger os oprimidos”.

O manual Kremlin pede à mídia estatal russa para  culpar o “ocidente coletivo”, que confia na “própria exclusividade”, bem como na “inferioridade” dos ortodoxos. 

Os autores recomendam falar sobre as causas da guerra da seguinte forma:

“O conflito na Ucrânia foi provocado pelas mãos de países ocidentais, que enviaram armas para a Ucrânia.

O objetivo estratégico do Ocidente coletivo por vários séculos em relação à Rússia não mudou — é a contenção, enfraquecimento, desmembramento e destruição completa da Rússia.”

No documento visto pelo Meduza, um dos objetivos da “operação especial” é proclamado como “a luta contra os ateus”que “não acreditam em nada – e acreditam que isso os liberta de quaisquer obrigações morais para com outras pessoas.”

O Kremlin propõe chamar os militares ucranianos, apelidados de “ukronazis”, de pessoas “sem Deus” que usam mulheres e crianças como “escudos humanos”:

“Para os ukronazis, não há moralidade, eles não raciocinam e são verdadeiros ateus. Eles não têm medo do castigo de Deus por suas atrocidades.

Muitos dos ukronazis são satanistas abertos e seguidores de cultos misantrópicos.”

Mídia estatal propaga tese do ‘ataque preventivo’

Os documentos obtidos pelo Meduza mostram que o Kremlin orienta a mídia estatal e pró-governo do país a argumentar que a guerra na Ucrânia é um “ataque preventivo”. 

Uma das justificativas para isso seria, novamente, que o “Ocidente coletivo” quer há muitos séculos destruir a Rússia.

O guia para a mídia estatal russa afirma que todos que fazem parte da lista, de Napoleão à OTAN, adotavam ou adotam a mesma tática, a de se voltar contra a Rússia. 

E traça uma analogia direta com o “Ocidente coletivo”, que “capacitou” a Ucrânia com armas e implantou ali uma “rede de biolaboratórios”, uma tese de propaganda que vem sendo largamente difundida desde o início do conflito. 

Mas para o manual, trata-se de uma luta do mal contra o bem, sendo o bem o lado da Rússia, que ao final vai vencer.

O texto diz que todos os ataques ocidentais terminam da mesma maneira:

“A sociedade se une em torno do líder nacional e, demonstrando coragem e heroísmo no campo de batalha, repele os invasores”. 

O Kremlin “recomenda” à mídia pró-governo e os políticos sistêmicos ressaltarem que isso supostamente aconteceu tanto após a vitória na Batalha do Neva quanto após o início da guerra na Ucrânia, embora o conflito esteja longe do fim. 

O Kremlin observa que agora o Ocidente quer destruir a Rússia por causa dos recursos de que necessita. Mas esses próprios recursos mudaram, observam os autores do manual. Se antes era a própria população, agora o Ocidente precisa de minerais:

“A sociedade de consumo que se desenvolveu no Ocidente requer muitos recursos. O Ocidente esgotou seus próprios recursos há vários séculos. Esta foi a causa do colonialismo e do neocolonialismo.

O Ocidente diz de forma direta que a Rússia tem muitos recursos para um país e, portanto, deve ser dividida.”

Enaltecendo a figura de Putin, os manuais para a mídia estatal russa relacionam ainda o atual conflito com a Segunda Guerra, reforçando a tese de ‘ataque preventivo’:

“Os líderes da Rússia e pessoalmente Vladimir Putin não permitiram um ataque ao país.

Foi decidido iniciar uma SVO [operação militar especial], que possibilitou evitar a repetição do dia 22 de junho de 1941, com a invasão das tropas nazistas à Rússia.”

A força da verdade 

Um dos capítulos do documento intitula-se “Força na Verdade!”. Essas palavras são atribuídas a Alexander Nevsky, mas segundo o site Meduza, os registros históricos afirmam que o príncipe proferiu uma expressão completamente diferente antes da batalha:

“Deus não está no poder, mas na verdade” (e essa citação também está no texto do Kremlin).

Este é o argumento para o manual sugerir como os soldados russos devem ser tratados na mídia estatal. 

“Havia verdade por trás dos soldados russos – eles defenderam sua casa e, portanto, a vitória não poderia deixar de ser nossa”, escrevem os autores do documento.

Os parágrafos sobre a “operação especial” não dizem nada sobre a proteção da casa, mas é mencionado que os soldados russos também estão “confiantes de que estão certos, porque continuam o trabalho de seus avós e bisavôs, que exterminaram o Nazismo.”

Mídia estatal russa já incorporou narrativas 

Segundo o Meduza, as orientações do Kremlin são amplamente difundidas pela mídia estatal russa e por veículos aliados ao governo — algo que, segundo o veículo, já ocorria antes mesmo da divulgação dos manuais, que pode ter sido feitos para formalizar e dar mais subsídios. 

No início de junho, a agência de notícias estatal RIA Novosti publicou uma matéria intitulada: “O satanismo e o ocultismo se tornaram a ideologia dos batalhões nacionais ucranianos.”

Outro site pró-Putin, o Gazeta.ru divulgou o texto “O Batismo da Rússia e uma operação especial na Ucrânia: o que há em comum?” com parágrafos inteiros tirados diretamente dos manuais do governo.

Reprodução Gazeta.ru

Um texto semelhante apareceu no site governista FederalPress. E outro, o Regnum, fez uma reportagem sobre as semelhanças entre a Batalha do Neva e a “operação especial” na Ucrânia.

Segundo duas fontes ouvidos pelo Meduza ligadas à Administração Presidencial, o Kremlin está agora tentando encontrar formas de explicar à população as razões da continuidade da guerra e o manual para orientar narrativas para a mídia estatal russa é parte deste esforço.

“Quanto mais dura a operação, mais perguntas as pessoas têm: por que isso está acontecendo? qual o objetivo?”.

n
Sair da versão mobile