Londres – Com menos 40% dos veículos de imprensa que existiam antes da tomada do poder pelo Talibã, há um ano, o Afeganistão está virando um deserto de jornalistas: 60% deixaram a atividade.
No país cujo regime ainda proíbe meninas de irem à escola, as mulheres jornalistas são as mais atingidas, com 76% tendo perdido o emprego, segundo levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) divulgado no primeiro aniversário da tomada de Cabul.
Sobraram apenas 656 trabalhando no país, de um total de 2.756 antes de agosto de 2021. Algumas conseguiram se reestabelecer e trabalhar fora do Afeganistão, enquanto outras passam por dificuldades para reconstruir a vida.
Jornalistas e veículos em crise depois do Talibã
A devastação do jornalismo independente no Afeganistão é resultado de uma combinação de crise econômica severa com repressão intensa à liberdade de imprensa, favorecida por regulamentações que abrem caminho para perseguição e autocensura.
Segundo a RSF, o Afeganistão tinha 547 meios de comunicação antes de 15 de agosto de 2021. Um ano depois, 219 fecharam.
E dos 11.857 jornalistas contabilizados antes do Talibã assumir o controle do país, existem agora apenas 4.759 na profissão.
Mulheres jornalistas são as mais atingidas
As mulheres sofreram mais na carnificina infligida ao jornalismo afegão no ano passado.
Não existem mais jornalistas trabalhando em 11 das 34 províncias do Afeganistão – Badghis, Helmand, Daikundi, Ghazni, Wardak, Nimroz, Nuristan, Paktika, Paktia, Samangan e Zabol – mostra o levantamento da ONG.
Das 2.756 mulheres jornalistas e profissionais de mídia empregadas no Afeganistão antes de 15 de agosto de 2021, apenas 656 ainda estão trabalhando, sendo 85 % na região de Cabul.
Acusações de “imoralidade ou conduta contrária aos valores da sociedade” são amplamente utilizadas como pretexto para assediar mulheres jornalistas e mandá-las para casa.
Essa visão de mundo tradicionalista no discurso oficial do novo Emirado Islâmico do Afeganistão resultou em mulheres apresentadoras de TV sendo obrigadas a cobrir seus rostos enquanto estavam diante das câmeras, observa a organização.
“Eles trabalham em condições física e mentalmente violentas” disse Bibi Khatera Nejat, uma jornalista que fugiu para o Paquistão e descreveu as condições que a levaram ao exílio.
“Trabalhei para a Rádio Hamseda na província de Takhar por sete anos”, disse ela à RSF.
“Claro que durante este período, como todas as mulheres jornalistas das províncias, especialmente aquelas que trabalham na rádio e na TV, fui alvo de assédio.
Várias vezes fui até ameaçada, mas pelo menos conseguimos resistir. Em 8 de agosto de 2021, o Talibã entrou na cidade.”
Nehat relatou que uma das primeiras coisas que os combatentes fizeram foi destruir equipamentos de mídia e fechar redações.
Ela buscou refúgio com a família em Cabul. Mas depois da queda da capital, em 15 de agosto, “não havia mais esperança”. Então, deixou o país.
“Estou agora no Paquistão, mas numa situação ainda mais difícil economicamente e sem saída.
As embaixadas não respondem aos nossos pedidos de visto. Um ano depois, fomos esquecidos pela comunidade internacional”.
Jornalista consegue ir para o Canadá, mas marido e filho seguem no Afeganistão
A partida foi difícil para quem teve que deixar uma vida para trás e já previa dificuldades burocráticas.
A premiada jornalista Farida Nekzad, editora-chefe da Pajhwok Afghan News, a maior agência de notícias independente do Afeganistão, também desistiu de seu país.
Ela é vencedora do prêmio International Women’s Media Foundation “Coragem no Jornalismo” em 2008 e era diretora do Centro para a Proteção de Jornalistas Mulheres Afegãs (CPAWJ).
Quando chegou ao Catar, ela deu um depoimento emocionado a um representante da Federação Internacional de Jornalistas.
No mesmo avião estavam pelo menos 15 jornalistas, incluindo nomes conhecidos das principais redes do país como Zen TV, Ariana News, Khalid e ToloNews.
Revelando que todos choravam no voo ela disse não saber o que a esperava no futuro, assim como outras colegas.
Morar no Catar ou em um terceiro país? Fazer carreira de novo? É uma perda de tempo?
We met Farida in Doha who worked as journalist in Afghanistan, helped many other women reporter and fled four days ago. Watch what she has to say! pic.twitter.com/li4d10D5ya
— Paul Ronzheimer (@ronzheimer) August 28, 2021
Nekzadd conseguiu ir para o Canadá com a filha e hoje leciona em uma universidade em Ottawa.
Mas o marido e o filho não conseguiram ainda sair do Afeganistão. Por ser jornalista, ele é alvo para o Talibã.
Da Bélgica, jornalista refugiada há dez anos analisa a situação
Mesmo quem já estava fora do pais antes da retomada do poder pelo Talibã acompanha de perto a situação da imprensa.
Lailuma Sadid é uma jornalista afegã e refugiada política devido às ameaças que recebeu do Talibã por seu trabalho jornalístico.
Ela mora na Bélgica há mais de uma década e é correspondente do jornal Brussels Morning.
Em entrevista à Federação Internacional de Jornalistas sobre o primeiro ano do novo governo afegão, ela diz “não ver esperança para o futuro, pois os dias sombrios voltaram”.
“A situação está piorando a cada dia.
Há algumas semanas, os talibãs enviaram uma carta às mulheres que ainda estavam trabalhando avisando-as para não virem ao escritório e enviarem um homem para substituí-las.”
Ela chama a atenção para as barriras impostas a mulherers jornalistas.
“Elas são impedidas de cobrir eventos, não têm acesso a informações e, às vezes, são até impedidas de ir às redações.”
Sadid afirma que os talibãs estão inundando boletins de notícias no Afeganistão com sua propaganda, tornado difícil para os cidadãos afegãos e para o mundo exterior saberem o que está acontecendo.
“As jornalistas estão enfrentando muitas ameaças, mas, ao mesmo tempo, mulheres jornalistas, ativistas, defensoras de direitos humanos e outras lideram a resistência e lutam por seus direitos.
Embora estejam arriscando suas vidas, as mulheres não estão ficando quietas. “
A coragem de quem ficou no Afeganistão
Um exemplo de resistência é Meena Habib, diretora da RouidadNews, uma agência de notícias com sede em Cabul que ela criou após 15 de agosto de 2021.
“Preferi ficar no meu país para relatar as notícias e defender o que as mulheres conquistaram nos últimos 20 anos”, disse ela à Repórteres Sem Fronteiras.
“As condições de vida e de trabalho das mulheres jornalistas no Afeganistão sempre foram difíceis, mas hoje vivemos uma situação sem precedentes.
As mulheres jornalistas, aquelas que têm a oportunidade de trabalhar, também trabalham por um salário miserável.
Eles cumprem seu dever de relatar as notícias de estômago vazio.Trabalham em condições física e mentalmente violentas e cansativas, sem qualquer proteção.
Hoje, todas as associações que defendem os direitos dos jornalistas são formadas inteiramente por homens e trabalham para homens.”
60% dos jornalistas do Afeganistão fora da profissão
Todos os jornalistas, homens e mulheres, foram atingidos pela mudança de regime e viram suas oportunidades profissionais evaporarem da noite para o dia no Afeganistão.
Um total de 7.098 jornalistas não estão mais trabalhando, incluindo 55% dos jornalistas do sexo masculino, contabilizou a RSF.
Dos 9.101 homens que praticavam jornalismo antes da queda de Cabul, 4.962 não estão mais trabalhando. como reflexo do fechamento de 40% dos meios de comunicação do país em um ano.
Embora quatro novos meios de comunicação tenham sido criados desde 15 de agosto de 2021, o Afeganistão perdeu 219 dos 547 meios de comunicação que tinha.
As províncias que sofreram as maiores quedas (quedas de mais de 50%) são Balkh, Bamyan, Panshir, Parwan, Takhar, Herat e Faryab, segundo mapeamento da RSF.
A região de Cabul, no centro do país, que tinha o maior número de meios de comunicação – 133 – também foi duramente atingida pela mudança de regime e perdeu quase metade deles. Existem apenas 69 operando agora, afirma a RSF.
Em algumas províncias, a exigência de substituir programas de música ou notícias por conteúdo religioso levou alguns meios de comunicação a interromper a transmissão.
Mas novos constrangimentos económicos, como a cessação do financiamento internacional ou nacional e a queda das receitas publicitárias em consequência da crise económica, também levaram alguns meios de comunicação a deixarem de funcionar.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Afeganistão perdeu 700.000 empregos, enquanto a proporção de afegãos abaixo do limiar da pobreza deve chegar a 97% este ano.
Esses fatores agravam o impacto das regulamentações draconianas e o desrespeito à própria lei de liberdade de imprensa do Afeganistão.
Em 2012, o Afeganistão ficou em 150º lugar entre 179 países no Índice de Liberdade de Imprensa da RSF. Em 2021, havia subido para 122º em 180 países graças a um cenário de mídia dinâmico e à adoção de legislação que protege os jornalistas.
E em 2022, depois de perder quase 40% de sua mídia e mais da metade de seus jornalistas, caiu para 156º.
Leia também | Talibã, um ano: veja os fatos que dizimaram a liberdade de imprensa no Afeganistão