Londres – Embora nos primeiros dias após a tomada de Cabul, em 15 de agosto de 2021, o comando do Talibã tenha sinalizado que jornalistas e meios de comunicação seriam respeitados no Afeganistão, não foi o que ocorreu no país que vive uma crise econômica e de liberdade.

Dali em diante o cenário foi de perseguições, ameaças e restrições formais ao trabalho da imprensa livre e das mulheres jornalistas. Três profissionais estão presos e pelo menos 80 foram detidos ao longo dos últimos 12 meses, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF). 

Junto com isso, veio uma crise econômica severa, que contribuiu para o fechamento de uma parcela significativa dos veículos de mídia do país, mesmo aqueles que não sofreram com a repressão direta. 

O tamanho da crise da imprensa no Afeganistão 

Um relatório da RSF contabilizou que o Afeganistão tinha 547 meios de comunicação antes de 15 de agosto de 2021. Um ano depois, 219 fecharam. 

E dos 11.857 jornalistas contabilizados antes do Talibã reassumir o controle do país, existem agora apenas 4.759 na profissão. 

O estudo da organização revelou que em algumas províncias, a exigência de substituir programas de música ou notícias por conteúdo religioso levou alguns meios de comunicação a parar de transmitir.

Mas novas restrições econômicas, como o término do financiamento internacional ou nacional e a queda na receita de publicidade como resultado da crise econômica, também levaram alguns meios de comunicação a parar de operar, diz a RSF. 

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Afeganistão perdeu 700 mil empregos, enquanto a proporção de afegãos abaixo do limiar de pobreza provavelmente chegará a 97% este ano.

Há duas semanas, funcionários de meios de comunicação locais em Uruzgan se reuniram para pedir ajuda a fim de evitar o colapso total da mídia na província, segundo reportagem da rede de TV afegã ToloNews. 

Baryalai Mangal, chefe da rádio Salam Uruzgan, disse que dos 25 funcionários no passado, restaram apenas cinco, dos quais quatro trabalham de graça. Somente o técnico é remunerado.

“Não podemos pagar o suficiente para os oito funcionários que trabalham conosco. Não podemos dar a eles dinheiro que satisfaça suas necessidades ou cubra as despesas de suas famílias”, disse Shah Mahmood Hamdard, chefe da Paiwastoon TV. 

A rede havia sido criada em fevereiro de 2021, antes da ascensão do Talibã. Hamdard foi um dos que cobrou ajuda financeira do Talibã para manter a mídia local operando. 

Mas a resposta não foi animadora. “O Afeganistão está enfrentando uma crise econômica, esta é a maior razão para isso”, disse ao ToloNews Ghulam Nabi Ulfat, chefe do departamento de Informação e Cultura de Uruzgan.

Esses fatores agravam o impacto dos regulamentos draconianos e o não cumprimento da própria lei de liberdade de imprensa do Afeganistão, promulgada em 2015 e que segundo um porta-voz do governo, ainda estaria em vigor.

Mas não é o que acontece na prática. 

Decretos e regulamentos agravam crise da mídia

Quando o Talibã tomou o poder, a RSF propôs a assinatura de um compromisso de que a imprensa seria respeitada e poderia trabalhar livremente, mas os novos líderes do país se recusaram a assinar, mergulhando o jornalismo do Afeganistão em uma crise que não dá mostras de arrefecer. 

Dali em diante houve uma sucessão de restrições formais ao conteúdo e ao trabalho das mulheres jornalistas. 

A ordem mais recente foi um decreto emitido em 22 de julho pelo líder supremo do Talibã, mulá Haibatullah Akhundzada, destinado a silenciar críticas a integrantes do governo.

O regulamento afirma que que “difamar e criticar funcionários do governo sem provas” e “difundir notícias e rumores falsos” são proibidos pelo Islã.

E informa que aqueles que “caluniam” funcionários do governo estão colaborando involuntariamente com o governo. inimigo e serão “punidos”.

“Este anúncio do mais alto funcionário do Emirado Islâmico é indicativo da determinação de suprimir a liberdade de imprensa no Afeganistão”, criticou a Repórteres Sem Fronteiras. 

Outros regulamentos decretados por vários órgãos talibãs com o objetivo de definir as regras que regem a liberdade de imprensa já estavam restringindo a atividade jornalística.

As “11 Regras do Jornalismo ” anunciadas pelo Government Media and Information Centre (GMIC) em 19 de setembro de 2021 já haviam aberto o caminho para a censura e a perseguição de jornalistas.

Elas são redigidas de forma vaga e afirmam que “assuntos que possam ter um impacto negativo na atitude do público ou afetar o moral devem ser tratados com cuidado ao serem transmitidos ou publicados”.

E determina que os meios de comunicação“prepararem relatórios detalhados em coordenação com o GMIC”. 

Um decreto emitido em 22 de novembro pelo Ministério para a Promoção da Virtude e Repressão ao Vício – que é responsável por garantir o respeito à Sharia no domínio público e fazer cumprir a doutrina corânica de “ordenar o bem e proibir o mal” – pede que pessoas com potencial de criticar o governo não sejam entrevistadas ou convidadas para programas de TV.

E outro decreto,  do Ministério da Informação e Cultura,  proibiu em 28 de março canais de TV privados de retransmitir programas de notícias fornecidos pelas emissoras internacionais BBC , Voice of America e Deutsche Welle em idiomas locais.

“Todos esses decretos violam a lei de mídia que foi promulgada em março de 2015 , denuncia a Repórteres Sem Fronteiras.

A organização afirma que, quando questionado pela RSF em fevereiro, o porta-voz do governo e vice-ministro da informação e cultura Zabihullah Mujahid havia garantido que essa lei de imprensa ainda estava em vigor. 

No Afeganistão do Talibã, abusos e prisões arbitrárias

Esses regulamentos resultaram em um aumento na censura e na autocensura da mídia e em das prisões arbitrárias de jornalistas.

Segundo a RSF, desde 15 de agosto de 2021, pelo menos 80 jornalistas foram detidos por períodos de duração variável pelas forças de segurança, especialmente pelos Istikhbarat (serviços de inteligência), que estiveram envolvidos na maioria das prisões arbitrárias de jornalistas – alguns deles violentos – desde o início de 2022.

Três jornalistas estão atualmente presos no Afeganistão sob alegação de “colocarem em risco a segurança do país”. 

Apenas um foi sentenciado, Khalid Qaderi , poeta e jornalista da Radio Norroz , com sede em Herat. Ele recebeu uma sentença de prisão de um ano de um tribunal militar em 7 de maio de 2022.

Os outros dois são Mirza Hassani , proprietário da Radio Aftab na província de Daikundi, que foi preso em 22 de maio de 2022, e Abdul Hanan Mohammadi , um repórter da agência de notícias Pajhwok baseado em Kapisa , preso em 12 de junho de 2022.

Ambos estão detidos aguardando julgamento.

Desde 15 de agosto de 2021, a RSF também registrou pelo menos 30 casos de jornalistas que foram vítimas diretas de violência por parte das forças de segurança no decorrer de seu trabalho.

Por sua vez, os líderes das novas organizações de jornalistas criadas sob a égide do Talibã – que fazem parte da nova Federação de Jornalistas e Mídia do Afeganistão – enfatizaram o progresso que fizeram em suas negociações com o governo.

Alguns acham que a situação melhorou no Afeganistão 

Líderes das novas organizações de jornalistas criadas sob a égide do Talibã – que fazem parte da nova Federação de Jornalistas e Mídia do Afeganistão – enfatizaram à RSF o progresso que fizeram em suas negociações com o governo. 

Hafizullah Barakzai , chefe do Conselho de Jornalistas no Afeganistão, identificou a economia como o problema mais importante e disse que “o número de casos de violência diminuiu em comparação com os últimos anos, apesar do aumento das ameaças durante os primeiros meses após 15 de agosto.”

O chefe da Organização para a Comunicação Social do Afeganistão, Abouzar Sarem Sarepole, salientou que os números das detenções arbitrárias de jornalistas variam conforme a organização de liberdade de imprensa que os contabilizam porque “alguns não especificam o motivo da detenção” e consideram que “alguns jornalistas não foram presos por suas atividades jornalísticas”.

Tanto Barakzai quanto Sarepole disseram acreditar que a reinstalação da Comissão de Verificação de Ofensas à Mídia – que eles esperam ocorrer em breve – poderia evitar prisões arbitrárias e intervenção governamental em assuntos de imprensa.

Essa comissão – cuja criação foi um dos dispositivos da lei de imprensa de 2015 – tem por objetivo tratar de denúncias contra jornalistas e veículos de comunicação.

A Repórteres Sem Fronteiras explica que de acordo com a lei de 2015, as queixas devem ser transferidas para um tribunal apenas se a comissão assim decidir.

Crise econômica agrava o quadro no Afeganistão

Essa visão otimista da comissão não é compartilhada por Zia Bumia, membro da antiga Federação de Jornalistas e Mídia do Afeganistão, que existia antes da tomada do Talibã.

Ele disse à RSF que a comissão não poderá desempenhar seu papel adequadamente, sobretudo porque não incluirá representantes da comissão independente de direitos humanos, que o Talibã suspendeu.

Falando sob condição de anonimato, um jornalista de Cabul que trabalha para um meio de comunicação nacional admitiu à ONG de liberdade de imprensa que “o reconhecimento da lei de imprensa de 2015 é um avanço significativo para os jornalistas no Afeganistão”.

Mas disse que não seria suficiente porque a situação se deteriorou muito.

“Metade dos jornalistas deixaram o país, a maioria dos meios de comunicação ainda em operação está em uma situação econômica terrível e provavelmente sairá do negócio, a pressão sobre a mídia e a censura oficial são sufocantes e a situação é ainda pior. nas províncias do que em Cabul”, disse. 

“Mais do que uma lei, precisamos do desejo de ajudar a mídia e respeitar a liberdade de imprensa no mais alto nível do governo, acima do Ministério da Informação e da Cultura.”

Em 2012, o Afeganistão ficou em 150º lugar entre 179 países no Índice de Liberdade de Imprensa da RSF. Em 2021, havia subido para 122º em 180 países graças a um cenário de mídia dinâmico e à adoção de legislação que protege os jornalistas.

E em 2022, depois de perder quase 40% de sua mídia e mais da metade de seus jornalistas, caiu para 156º.