Londres – Foram 12 dias de concentração quase total da mídia britânica na morte da rainha Elizabeth, ciclo que chegou ao fim nesta terça-feira com edições especiais dos jornais sobre o enterro combinando emoção familiar e popular com a glorificação da monarquia.
Isso não quer dizer que a monarquia tenha saído da pauta da mídia ou que vá algum dia sair, no Reino Unido e no mundo.
Quase 100 chefes de estado presentes ao funeral da monarca é um sinal de relevância, apesar dos movimentos para colocar fim ao atual sistema de governo. Mas o ciclo “morte – luto – enterro” se fechou com um evento chamado de “histórico”.
A capa do jornal i foi a que melhor traduziu este momento, com o título “o fim da era Elizabeteana”.
O Palácio de Buckingham “encerrou” suas postagens em redes sociais na noite do enterro com uma foto quase poética da rainha Elizabeth, solitária nas montanhas perto da propriedade de Balmoral, onde morreu no dia 8 de fevereiro aos 96 anos, depois de completar sete décadas no trono.
A frase escolhida é a última de Hamlet, de Shakespeare, significando (em tradução livre), “que o som dos anjos voando a acompanhe até o seu descanso”.
‘May flights of Angels sing thee to thy rest.’
In loving memory of Her Majesty The Queen.
1926 – 2022 pic.twitter.com/byh5uVNDLq
— The Royal Family (@RoyalFamily) September 19, 2022
O “acampamento” das emissoras para transmitir telejornais com o Palácio de Buckingham ao fundo foi desmontado. Âncoras já trocaram os trajes negros por roupas coloridas.
Mas muitas entrevistas repercutem os acontecimentos da segunda-feira e analisam o futuro do rei Charles III, que é na verdade o futuro da monarquia e do status quo da Grã-Bretanha.
Para quem acha que o status quo deve ser mantido, a cobertura dos jornais e das TVs sobre a morte e o enterro da rainha Elizabeth foi um alívio.
Muita emoção e pouca visibilidade para temas sensíveis como denúncias envolvendo doações à fundação do príncipe Charles ou o custo do funeral para o contribuinte.
As estimativas são de que a conta pode chegar a £ 8 milhões (R$ 47 milhões), talvez mais. A audiência global deve ser a maior da história, como calculou a empresa de pesquisas alemã Statista.
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É de se esperar que com o passar do tempo alguns veículos adotem um tom mais crítico, até porque vem aí a coroação do rei Charles III, prevista para o terceiro trimestre de 2023.
Debater quanto vai custar e quem paga, em um momento de quase pânico pela alta no custo de vida, é inevitável. Será um abacaxi para o rei e a primeira-ministra Liz Truss descascarem.
Em seu momento final, a cobertura da mídia seguiu combinando glorificação da monarquia e de seus símbolos com o registro do sofrimento de filhos, netos e bisnetos pela perda de um ente querido, gerando empatia com os que veem Elizabeth II como “pessoa da família”.
E não se limitou a registrar os eventos oficiais, documentando o luto e o engajamento do público que foi às ruas para ver o cortejo, assistiu à missa em telões ou levou homenagens aos locais de tributo.
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Isso pode ajudar a neutralizar essas críticas futuras, angariando apoio ao atual sistema – que pode ser criticado por tudo, menos por não ser globalmente midiático e diplomaticamente relevante.
Veja como os principais jornais noticiaram o enterro da rainha
O Daily Telegraph foi o que melhor retratou em sua capa o sofrimento da família, com uma foto em close do rei Charles que humaniza a pompa das celebrações. O título é “um derramamento de amor”.
O jornal Metro ousou em uma capa envolvendo sua edição de hoje sem o elemento principal: a manchete.
Dispensando palavras, ocupou todo o espaço com uma foto do cortejo, em que o rei Charles apareceu ao fundo. Em primeiro plano, a simbólica figura da Guarda Real e o estandarte.
A segunda foto que envolve a edição retrata a chegada do caixão a Windsor sob os olhares de uma multidão.
Outros jornais usaram poucas palavras para a capa história do enterro da rainha Elizabeth, dando mais peso às imagens.
Em alguns casos adotando um tom místico, como o Daily Mirror que escreveu em seu título “… até que nos encontremos novamente”.
O Daily Express foi mais explícito na religiosidade, mencionando Deus em sua manchete.
O mesmo fez o The Sun, que na contracapa que envolve a edição destaca “Deus abençoe a rainha” e Deus salve o rei”.
Na capa frontal, uma imagem do cortejo cercado pelo público e a glorificiação da monarquia, com o título que usa a palavra “vitoriosa” para se referir à Elizabeth II.
Dois jornais que nos últimos dias haviam reduzido o espaço da capa para a cobertura da morte e do enterro da rainha Elizabeth se renderam à importância do evento histórico.
O The Guardian escolheu uma foto semelhante à de outros jornais para ilustrar a capa e uma frase simples, “O último adeus”.
No texto, ressalta que apesar de toda a pompa e circunstância, o momento exato do enterro foi reservado à família, contrastando com os acontecimentos do dia.
E faz chamadas para análises sobre o futuro do rei Charles e o potencial da rainha como elemento de imagem da monarquia, uma grande questão que só o tempo responderá.
Assim como os demais jornais, o Financial Times se rendeu e voltou a dedicar sua primeira página inteira ao enterro da rainha Elizabeth, deixando de publicar outras notícias.
O texto destaca a presença dos chefes de Estado no maior funeral desde o de Winston Churchill.
E o suposto atraso do presidente Joe Biden, que acabou fazendo com que ficasse apenas na 14ª fileira.
No The Times, o subtítulo da manchete sobre a última jornada da rainha Elizabeth destaca o “esplendor e pompa” da cerimônia que levou dezenas de milhares de pessoas às ruas.
O Daily Mail escolheu como imagem de sua capa o momento exato em que o caixão da rainha Elizabeth foi visto pela última vez pelo público, com a manchete “A jornada final”.
Na legenda, o jornal destaca que ela “descansará eternamente” ao lado de seu marido, o príncipe Philip, da mãe, do pai e da irmã.
A longa união da rainha Elizabeth com o príncipe Philip foi lembrada por outros jornais que noticiaram o enterro, na capa ou nas páginas internas.
No tabloide Daily Star, esse foi o destaque. A manchete e o texto secundário falam que eles ficarão lado a lado.
O conteúdo das edições não variou muito.
A tristeza da família foi um tema recorrente. Muita atenção foi dada pela mídia a duas crianças, os príncipes George e Charlotte, assistindo ao vivo a um evento histórico que ao mesmo tempo era a despedida de sua bisavó.
Os jornais e TVs escalaram um exército de equipes, muitos freelancers contratados especialmente para a ocasião, a fim de registrar as impressões do povo, que não variavam muito: a razão para estar ali, o que a rainha Elizabeth representava, o sentimento de perda.
Nas redes sociais, no entanto, houve mais espaço para dissidência, com manifestações contrárias à monarquia e à própria rainha Elizabeth, associada por muitos à história de colonialismo do Império Britânico.
O grupo de pressão Republic, o mais organizado defensor do fim do regime, manteve-se ativo no Twitter nos últimos dias aproveitando os eventos fúnebres para questionar a existência da monarquia.
Um vídeo produzido pelo grupo aborda diretamente a figura do rei Charles III.
No one should be king. This documentary tells you why Charles is particularly unfit for the role. #NotMyKing https://t.co/FnAVquLcVR
— Republic (@RepublicStaff) September 20, 2022
No meio de toda a solenidade, houve também espaço para brincadeiras nas redes, com gente que não leva tão a sério nem um lado nem do outro do debate.
Um bispo que deixou cair uma folha de papel perto do caixão da rainha durante a cerimônia religiosa na Abadia de Westminster viralizou nas redes sociais.
The slow zoom onto that dropped paper really is the icing on the cake here pic.twitter.com/3L684a93T7
— Ben Marshall (@benmarshallfilm) September 19, 2022
O assunto acabou sendo repercutido pela mídia global e internacional pelo inusitado da situação, com a hashtag #papergate.
Republicanos ou monarquistas, os britânicos não perdem a piada.
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