Londres – Uma ordem de suspensão de um canal de TV independente russo por sua cobertura sobre a guerra na Ucrânia está provocando indignação, mas desta vez o alvo não é a Rússia, e sim a Letônia.
A capital do país, Riga, virou um porto seguro para veículos e jornalistas sob perseguição do governo de Vladimir Putin mesmo antes da invasão, mas surpreendentemente o órgão regulador de mídia eletrônica rescindiu no dia 6 de novembro a licença do canal Dozhd, conhecido como Rain.
A organização Repórteres sem Fronteiras foi uma das que lamentou profundamente a “decisão inexplicável”, cobrando do regulador que explique as razões para a censura.
“A decisão incompreensível e perturbadora de rescindir a licença do Rain na Letônia é indigna de um país europeu que defende a liberdade de imprensa”, disse Jeanne Cavelier, chefe da RSF para a Europa Oriental e Ásia Central.
“Essa censura de um meio de comunicação russo independente prejudica os esforços para combater a propaganda do Kremlin, que é um dos objetivos do governo da Letônia.
Se a decisão foi tomada em conexão com as preocupações do Serviço de Segurança do Estado sobre ‘ameaças à segurança nacional e à ordem pública’, conforme afirmado na declaração oficial do regulador de mídia, o regulador deve fornecer uma explicação precisa das razões.”
Como resultado dessa decisão, o Rain terá que parar de transmitir na Letônia a partir de 8 de dezembro, mas o canal anunciou que continuará veiculando sua programação pelo YouTube, com mais de 13 milhões de espectadores somente na Rússia.
O canal de TV havia se mudado para Riga no início do ano, diante do assédio do Kremlin intensificado depois da guerra com a Ucrânia.
Canal de TV não apoia guerra com Ucrânia
Apesar de suas declarações públicas críticas à guerra, o Rain foi acusado pelo regulador letão de “possível apoio às forças armadas russas”.
Além das informações recebidas pelo Serviço de Segurança do Estado da Letônia, que não foram reveladas, o Conselho Nacional de Mídia Eletrônica (NEPLP) citou três supostas violações pela TV Rain desde que começou a transmitir da Letônia no verão passado, como relatou a Repórteres Sem Fronteiras.
Em primeiro lugar, não transmite na língua local. Em segundo lugar, uma de suas reportagens se referiu às forças armadas russas como “nosso exército” e exibiu um mapa mostrando a Crimeia como parte da Rússia, pela qual o canal foi multado em 10 mil euros e pelo qual o editor-chefe Tikhon Dzyadko admitiu que um “erro” foi feito por um jornalista da redação.
Finalmente, o regulador considerou um comentário do apresentador Alexei Korostelev durante uma transmissão ao vivo como um apelo para apoiar as forças armadas russas.
Em seu comentário, Korostelev disse que esperava que o canal tivesse sido “capaz de ajudar muitos soldados, incluindo, por exemplo, equipamentos básicos e produtos de conveniência”.
Korostelev, que foi demitido por causa desse comentário, se defendeu em um post em seu canal Telegram, apontando para sua posição antiguerra, descrevendo seu comentário como um “lapso” e dizendo que foi retirado do contexto.
O editor-chefe da TV Rain, Tikhon Dzyadko, pediu desculpas no ar pelo erro, salientando que o Rain sempre cobriu os crimes de guerra da Rússia e expôs as mentiras das autoridades russas sobre a guerra com a Ucrânia.
“Rain é um meio de comunicação que nunca forneceu e não planeja fornecer apoio de qualquer tipo a nenhum exército”, disse ele.
Letônia desconfiada de jornalistas russos
Vários outros meios de comunicação independentes da Rússia, como os sites de notícias Meduza e Novaya Gazeta.Europe, se mudaram para Riga depois de serem forçados a deixar o país por causa da censura e repressão.
Mas segundo a Repórteres Sem Fronteiras, algumas autoridades letãs demonstram desconfiança em relação aos jornalistas russos exilados, embora eles se oponham claramente a Vladimir Putin.
Em 2 de dezembro, o ministro da Defesa twittou: “Acredito que os jornalistas da TV Rain / Dozhd devem ir trabalhar na Rússia e que suas autorizações de residência devem ser revogadas.”
O Meduza, cuja CEO, Galina Timchenko, acaba de ser homenageada pelo Comitê de Proteção a Jornalistas por sua coragem em desafiar a censura russa, está liderando um movimento de apoio ao Rain. Já são mais de 400 assinaturas, entre pessoas e organizações.
No telejornal de 6 de dezembro, o editor Tikhon Dzyadko falou sobre a decisão comparando-a à proibição do canal de TV na Rússia oito anos atrás.
Devo dizer que o que está acontecendo é um flashback interessante. Lembro-me bem de como, oito anos e meio atrás, anunciei no ar o desligamento do canal de TV das redes a cabo na Federação Russa.
Hoje, oito anos e meio depois, estou relatando a mesma coisa, mas já na Letônia, para onde nossa equipe foi forçada a se mudar devido à impossibilidade de trabalhar na Federação Russa sob censura militar, devido à minha posição anti-guerra, por causa da rejeição à guerra que a Federação Russa está travando contra a Ucrânia.
Dzyadko chamou a acusação de ameaça à segurança nacional de “farsa”, e reclama por não ter tido a chance de se defender na reunião de 30 minutos do Conselho de Mídia Eletrônica que tomou a decisão.
Ele ironizou o tamanho da sentença, 14 páginas, escrita em tão pouco tempo, sugerindo que já estivesse pronta.
O editor contestou ainda a acusação de que o canal não percebeu a gravidade das violações cometidas, lembrando que o funcionário autor de uma “declaração inaceitável” foi demitido, o que mostra que seu ato não reflete a posição da empresa jornalística.
Ele assegurou que o canal de TV Rain “sempre foi, é e será contra a anexação ilegal da Crimeia, contra a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, e sempre fará todo o possível para garantir que a verdade sobre isso seja levada ao conhecimento de tantas pessoas quanto possível na Federação Russa e além de suas fronteiras”.
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