Londres – A BBC já viveu crises em seus 100 anos, como a do apresentador pedófilo Jimmy Saville, mas nada se compara à tempestade que se abateu sobre a rede pública britânica nos últimos dias, um enredo que mistura liberdade de expressão, imparcialidade e política partidária tendo como protagonista uma das figuras mais admiradas do país, o ex-jogador de futebol Gary Lineker. 

Com mais quase 9 milhões de seguidores no Twitter, Lineker apresenta o programa esportivo Match of The Day, comentando com atletas convidados os jogos da rodada – mas está suspenso desde sexta-feira (10) por um tweet condenando a nova politica imigratória do país. O programa foi ao ar no fim de semana em versão reduzida, sem comentários.  

O astro da BBC foi apoiado por uma legião de atletas, jornalistas e comentaristas, alguns se recusando a entrar no ar em solidariedade e criticando a rede por supostamente se deixar influenciar pelo governo na decisão do afastamento. Jogadores da Premier League disseram que não iriam dar entrevistas à BBC neste domingo. 

O tweet de Lineker que desencadeou a crise na BBC

Com o maior salário da BBC ( £ 1,35 milhões, ou R$ 8,4 milhões por ano), Lineker não está ligado ao departamento de jornalismo nem é funcionário contratado, atuando como uma espécie de freelancer fixo – portanto, supostamente não sujeito às regras sobre uso de redes sociais aplicadas a jornalistas da BBC. Mas isso não foi suficiente para evitar a punição, pois o regulamento é ambíguo sobre contratados. 

A crise começou terça-feira (7), quando Lineker usou o Twitter, como já fez outras vezes, para um comentário sobre temas alheios ao futebol que comenta na BBC

Ele condenou a linguagem utilizada na polêmica política do governo britânico para evitar a entrada de refugiados em pequenos barcos pelo Canal da Mancha, protocolada no Parlamento naquele dia, associando-a ao nazismo.

“Uma política imensuravelmente cruel dirigida às pessoas mais vulneráveis ​​em uma linguagem que não é diferente daquela usada pela Alemanha nos anos 30”.

Para quem defende Lineker – e para ele próprio – a posição nada tem a ver com o seu trabalho como apresentador de um programa de esportes, pois foi emitida em sua conta pessoal do Twitter. Puni-lo por isso foi visto como cerceamento à liberdade de expressão.

Um dos que apontou essa contradição foi Alan Rusbridger, jornalista que já dirigiu a redação do jornal The Guardian e e faz parte dos conselhos do Instituto Reuters e do Facebook. 

Ele afirma que a imparcialidade dos jornalistas da BBC é importante, mas observa que Lineker foi contratado por sua expertise em futebol. E chama de “ridículo” o destaque que a própria BBC está dando ao assunto. 

Mesmo que a rede não desse destaque ao caso em seus noticiários, o restante da mídia o faria. O contexto político e a reação considerada intolerante da BBC fez com que a crise tomasse proporções gigantes, com uma onda de apoio a Lineker e o caso ocupando todas as capas dos jornais britânicos neste fim de semana. 

Gary Lineker crise BBC jornais

A crise de Lineker na BBC se tornou um assunto mais importante na mídia e nas redes sociais do que a própria política para limitar a entrada de imigrantes. 

Governo x BBC: entenda a crise 

Embora seja uma emissora pública, a BBC não é (ou não deveria ser) uma rede estatal, controlada pelo governo. Ela é financiada por receitas geradas pelos programas (de filmes a entretenimento, muitos vendidos para outras redes) e por uma taxa anual que todas as residências britânicas devem pagar para assistir aos canais. 

Mas cabe ao governo determinar aumentos na taxa e interferir no modelo de financiamento, e foi o que o Partido Conservador, atualmente no poder, começou a fazer na gestão de Boris Johnson.

Ele se tornou primeiro-ministro em 2021, em plena tensão do Brexit, que ele prometeu realizar a qualquer custo em um momento em que a dificuldade de um acordo de saída com a União Europeia dava argumentos aos que desejavam um novo plebiscito.

Johnson e seus aliados passaram a criticar abertamente a suposta parcialidade da BBC ao tratar do tema. Jornalistas da casa e convidados falavam sobre os problemas do acordo e noticiavam os movimentos contrários ao Brexit, o que desagradou o governo. 

A partir daí, a BBC passou a sofrer uma série de pressões, incluindo o congelamento da taxa obrigatória, o que a fez cortar programas, serviços internacionais e a demitir funcionários.  

A ex-ministra de Cultura e Mídia na gestão de Johnson, Nadine Dorries, não disfarçava seu objetivo de cortar as asas da BBC, alegando que ela deveria ir para o mercado e competir de igual para igual com outras redes. 

Nomeações políticas 

O governo também interferiu nos destinos da BBC com nomeações consideradas políticas para os dois cargos mais importantes. O atual Chairman é Richard Sharp, um empresário sem experiência em mídia agora investigado por ter intermediado contatos para Boris Johnson conseguir um empréstimo. 

Sua presença no cargo tem sido contestada abertamente por figuras políticas e do jornalismo, incluindo algumas da própria BBC, como a popular apresentadora Victoria Derbyshire. Ela questionou a suspensão de Lineker enquanto Sharp enfrenta duas investigações. 

O outro é Tim Davies, o diretor-geral, que tomou a decisão da suspender Gary Lineker. Ele já ocupou vários cargos na BBC, onde entrou para atuar na área de marketing em 2005, e já se candidatou a conselheiro pelo Partido Conservador no passado, o que colocou em questão suas ligações com o partido do governo. 

Davies é a maior vidraça na crise da BBC envolvendo Lineker. As pressões para que ele renuncie ao cargo vêm de todos os lados. Neste sábado, ele deu uma entrevista à própria BBC negando que iria renunciar, mas admitiu que vivia “dias difíceis”. 

Ele se referia às críticas e aos boicotes. 

Uma onda se levantou em defesa do apresentador, começando por convidados habituais de seu programa. Tão logo a decisão foi anunciada, vários disseram que não aceitariam convite para participar do Match of The Day em solidariedade.

Outros apresentadores de programas esportivos fizeram o mesmo, assim como figuras do mundo esportivo e os jogadores da liga principal de futebol, que não estão dando entrevistas a jornalistas da BBC. 

Jurgen Klopp, técnico do Liverpool, disse não conseguir entender o motivo de alguém ser afastado por um comentário que era uma mensagem sobre direitos humanos, “e isso deveria ser possível dizer”. 

A apresentadora Alex Scott, também ex-jogadora como Gary Lineker, foi outra que se solidarizou com o atleta, dizendo que não ia apresentar o programa sobre a liga de futebol feminina deste sábado por “simplesmente não achar certo”. 

O que diz Lineker 

Assim como já fez outras vezes, Lineker se recusou a remover o tweet ou pedir desculpas. A BBC chegou a anunciar que estava “conversando” com o jogador, mas não conseguiu dobrá-lo.

Na sexta-feira (10) ele fez um movimento para deixar a rede ainda mais contra a parede, com um tuíte dizendo que estava pronto para apresentar o Match of the Day no sábado, e chamando a história de “ridícula e fora de proporção”. O tweet passa de 10 milhões de visualizações. 

Mas não adiantou. Ele não voltou ao ar no sábado. A versão abreviada de 20 minutos do programa não teve comentários, apresentadores ou especialistas depois que a equipe de convidados também saiu em solidariedade ao apresentador. 

A rede anunciou que a cobertura do futebol de domingo também seria reduzida. 

A crise Lineker x BBC foi tema dos programas de entrevistas sobre política exibidos na TV britânica na manhã de domingo, com defesa da BBC por integrantes do governo e críticas ao Partido Conservador por supostamente pressionar a BBC a punir Lineker por parte da oposição.

Houve também debates sobre os limites entre opinião pessoal e o trabalho de Lineker na BBC. 

Philip Hammond, ex-parlamentar que ocupou o cargo de chanceler no governo da ex-primeira-ministra Theresa May – que não reclamava publicamente da BBC como passou a fazer seu sucessor, Boris Johnson -, fez uma análise da situação no programa de Sophie Ridge, na Sky News. 

Ele disse: 

Há duas coisas que realmente me impressionaram neste debate. Corremos o risco de confundir duas questões distintas. Há a imparcialidade da BBC, que é um princípio muito importante, é claro, para uma emissora de serviço público, e acho que provavelmente, em geral, a BBC geralmente acerta.

Eu sei disso porque as pessoas no meu partido [Conservador] acham que a BBC é institucionalmente tendenciosa contra ela, e sei que as pessoas no Partido Trabalhista também sentem que a BBC é institucionalmente tendenciosa contra ela, então provavelmente ela está fazendo algo certo.

Depois, há uma questão separada sobre se os indivíduos que estão intimamente associados a grandes corporações podem expressar publicamente pontos de vista que são altamente controversos e não são os pontos de vista dessa corporação. Acho que, de um modo geral, isso não é aceitável.

É ainda mais importante quando a corporação é um órgão público, como a BBC, ou mesmo o serviço público. O mesmo seria verdade para um funcionário público sênior tuitando algo altamente controverso.

A crise da BBC com Lineker pode ser encerrada com alguma acordo entre ambos para que ele continue tuitando, visto que dificilmente o apresentador aceitará se submeter a limites sobre o que pode falar nas redes. Um caminho seria uma revisão na atual política para deixar claro o que contratados podem ou não fazer. 

A BBC deu sinais de que deseja a paz, mas o jogo político é pesado, com figuras do lado conservador cobrando da emissora rigor sobre Gary Lineker. 

O outro possível desfecho é ele deixar a BBC e ir para uma emissora privada, provavelmente ganhando até mais do que ganha na rede pública.

Isso resolveria o problema da BBC, mas não o do governo desconfortável com críticas, pois Lineker continuará fazendo-as na casa nova.  E terá deixado a rede com mais uma crise a afetar sua reputação.