O monitoramento e coleta indevida de dados de crianรงas para fins de publicidade infantil online, geralmente associados ao uso de redes sociais, estรก presente tambรฉm em sites de ensino a distรขncia no Brasil, como revelou um novo relatรณrio da organizaรงรฃo internacional Human Rights Watch (HRW).

A pesquisa mostrou que sites privados e atรฉ alguns criados por secretarias estaduais de educaรงรฃo nรฃo apenas monitoram as crianรงas em suas salas de aula virtuais, mas tambรฉm as acompanham enquanto navegam na Internet, fora do horรกrio escolar, “mergulhando profundamente em suas vidas privadas” e chegando a gravar seus movimentos.

Depois da publicaรงรฃo do relatรณrio, pelo menos uma das empresas citadas, a Escola Mais, que tem parceria com a Secretaria de Educaรงรฃo de Sรฃo Paulo, removeu os links utilizados para coletar dados enviados para 37 empresas especializadas em publicidade comportamental, segundo a HRW.

E a secretaria de Educaรงรฃo de Minas Gerais retirou o rastreamento de anรบncios de seu site. Mas a organizaรงรฃo alertou para a extensรฃo do problema e da falta de aรงรฃo coletiva:

“Embora a decisรฃo […] seja positiva, a proteรงรฃo da privacidade das crianรงas brasileiras nรฃo deveria variar de estado a estado; os estudantes tampouco podem depender da boa vontade de empresas e governos.”

A HMR criticou a A Lei Geral de Proteรงรฃo de Dados Pessoais, que na avaliaรงรฃo da entidade nรฃo oferece salvaguardas suficientes para crianรงas e adolescentes.

“Ela nรฃo proรญbe explicitamente que atores explorem informaรงรตes de crianรงas e adolescentes ou exige que forneรงam alto nรญvel de seguranรงa e proteรงรฃo.”

Dados para publicidade infantil 

A investigaรงรฃo conduzida pela Human Rights Watch em novembro de 2022 e revisada em janeiro de 2023 constatou que sete sites educacionais extraรญram e enviaram dados de crianรงas e adolescentes para empresas terceirizadas, usando tecnologias de rastreamento projetadas para publicidade.

Os sites apontados pela pesquisa sรฃo: Estude em Casa, Centro de Mรญdias da Educaรงรฃo de Sรฃo Paulo, Descomplica, Escola Mais, Explicaรช, MangaHigh e Stoodi.

Os guias de estudo e vรญdeos do Escola Mais foram endossados pela Secretaria Estadual de Educaรงรฃo de Sรฃo Paulo para estudantes do ensino fundamental durante o fechamento das escolas devido ร  Covid-19. O website anuncia aulas presenciais orientadas pela tecnologia para estudantes do ensino fundamental e mรฉdio.

Um oitavo site, Revisa Enem, enviou os dados de crianรงas e adolescentes para uma empresa terceirizada, porรฉm sem usar rastreadores especรญficos de anรบncios.

As  prรกticas configuram invasรฃo de privacidade, como explicou Hye Jung Han, pesquisadora de tecnologia e direitos da crianรงa da Human Rights Watch:

โ€œCrianรงas e adolescentes, bem como suas famรญlias sรฃo mantidas no escuro sobre a vigilรขncia de dados praticada em salas de aula online.

 Em vez de proteger crianรงas e adolescentes, governos estaduais permitiram deliberadamente que qualquer pessoa as vigiasse e coletasse suas informaรงรตes pessoais onlineโ€.

Sites de educaรงรฃo infantil gravavam usuรกrios

A Human Rights Watch salientou que cinco sites aplicaram tรฉcnicas de rastreamento particularmente invasivos para vigiar estudantes de forma invisรญvel e “de maneiras impossรญveis de se evitar ou se proteger”.

A pesquisa revelou que o site da Escola Mais utilizava o recurso de gravaรงรฃo da sessรฃo, que permite assistir e registrar o comportamento de um usuรกrio em uma pรกgina da web.

O monitoramento inclui cliques do mouse e movimentos em sites.

Com esses dados em mรฃos, um observador examina o que foi coletado para definir um padrรฃo de usuรกrio, ou seja, qualificar sua personalidade, suas preferรชncias e o que essa pessoa provavelmente farรก a seguir.

Os anunciantes podem usar essas informaรงรตes para direcionar conteรบdo personalizado e anรบncios para crianรงas e adolescentes, ou conteรบdo exposto a elas.  

O instituto tambรฉm descobriu que quatro dos sites monitorados rastreiam crianรงas e adolescentes com mais intensidade do que normalmente um adulto รฉ rastreado na internet.

Com a exceรงรฃo do site Revisa Enem, todos os outros examinados pela Human Rights Watch coletaram grandes quantidades de dados de crianรงas e adolescentes e os enviaram para empresas especializadas em publicidade comportamental.

A ONG afirmou que a Escola Mais nรฃo respondeu a quatro pedidos de esclarecimento encaminhados antes da publicaรงรฃo do relatรณrio.

Depois que o relatรณrio foi publicado, em 3 de abril, a empresa argumentou que sua vigilรขncia de dados se destinava a adultos, e informou que passaria a oferecer a seus estudantes um acesso direto ร  plataforma de aprendizagem virtual sem uso do site principal, que possui vigilรขncia ativa de dados.

Na รกrea de Polรญtica de Privacidade do site Escola Mais – que poucos usuรกrios tรชm o cuidado de verificar ao se inscreverem em serviรงos na Internet, a empresa avisa que os contratantes estรฃo cientes de que as informaรงรตes fornecidas, incluindo dados pessoais, poderรฃo ser divulgadas a “fornecedores e parceiros para consecuรงรฃo de sรฉrvios contratados com a Escola Mais, como tecnologia da informaรงรฃo, contabilidade, jurรญdico, entre outros”.

Isso deixa aberta a possibilidade de uso para fins de publicidade, o que muitos pais nรฃo se dรฃo conta ao utilizarem sites de ensino a distรขncia.

Coleta de dados infantis em site de governos 

A Human Rights Watch tambรฉm revelou que, de 2021 a 2023, sites educacionais pertencentes e operados pelas prรณprias secretarias de educaรงรฃo de Minas Gerais e Sรฃo Paulo enviaram dados pessoais de crianรงas e adolescentes para empresas de tecnologia de publicidade.

Ambos os sites continuam sendo atualizados regularmente com videoaulas e materiais para estudantes.

A organizaรงรฃo elogiou a remoรงรฃo do rastreamento feito pela secretaria mineira antes da publicaรงรฃo do relatรณrio:

“Esse avanรงo positivo demonstra queรฉ possรญvel construire oferecer serviรงos educacionais para crianรงas e adolescentes que nรฃo comprometam seus dados e sua privacidade.”

Jรก a  Secretaria Estadual de Educaรงรฃo de Sรฃo Paulo continua endossando o uso de sete sites educacionais que coletam indevidamente dados pessoais de estudantes, inclusive sites desenvolvidos pela prรณpria Secretaria, disse a HRW.

A ONG disse ter  compartilhado o que encontrou na pesquisa com  as empresas e as duas secretarias estaduais de educaรงรฃo, e deu a elas vรกrias oportunidades de resposta atรฉ em marรงo de 2023, antes da publicaรงรฃo.

Algumas responderam, outras nรฃo (as respostas podem ser vistas no relatรณrio).

Quando contatado para comentar, o Google nรฃo reconheceu ร  HRW que recebeu dados desses sites e nรฃo respondeu se eles usaram esses dados para fins de publicidade. Aspolรญticas de publicidade do Googleproรญbem o direcionamento de publicidade comportamental para crianรงas menores de 13 anos

A Human Rights Watch afirma que a criaรงรฃo de perfis, o direcionamento e a publicidade para crianรงas e adolescentes nestes moldes violam “de forma inadmissรญvel sua privacidade”, pois nรฃo sรฃo aรงรตes proporcionais ou necessรกrias para que esses sites funcionem ou forneรงam conteรบdo educacional.E observa que essas aรงรตes tambรฉm podem violar outros direitos de crianรงas e adolescentes se essas informaรงรตes forem usadas para orientรก-las em direรงรฃo a consequรชncias prejudiciais ou contrรกrias aos seus interesses.

“Essas prรกticas tambรฉm desempenham um papel significativo na formaรงรฃo das experiรชncias online de crianรงas e adolescentes e na determinaรงรฃo das informaรงรตes que eles acessam, em um momento de suas vidas em que suas opiniรตes e crenรงas correm alto risco de interferรชncia manipuladora.”