A extensão da violência online contra jornalistas durante a disputa eleitoral entre Jair Bolsonaro e Luís Inacio Lula da Silva foi medida em um relatório que acaba de ser publicado pela representação brasileira da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras. 

O documento O jornalismo frente às redes de ódio no Brasil contabilizou que entre 15 de agosto e 14 de novembro foram registradas mais de 3,3 milhões de postagens ofensivas e intimidatórias contra jornalistas e meios de comunicação apenas no Twitter. 

A violência online atingiu mais severamente as jornalistas que criticavam abertamente o então presidente Jair Bolsonaro:  53% dos posts ofensivos foram direcionados a elas, e 7 entre os 10 profissionais mais atacados são mulheres.

Violência online contra jornalistas 

Artur Romeu, diretor da RSF para a América Latina, afirma que o estudo de caso sobre o Brasil pode contribuir para os debates globais sobre como proteger o direito da população de acessar informações plurais e independentes em períodos eleitorais. 

O trabalho foi feito pela RSF em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), um dos principais centros de pesquisa de referência em análise de redes sociais e tendências digitais do país.

Foram monitorados 121 jornalistas e comentaristas, além de perfis de autoridades públicas e candidatos às eleições, resultando na análise de mais de 24 milhões de posts feitos no Twitter entre 16 de agosto e 15 de novembro.

Artur Romeu, diretor da RSF na América Latina, diz no documento que já se esperava um agravamento da situação durante o período eleitoral, que normalmente é marcado por intensificação de violações atingindo jornalistas. 

Mas o relatório superou as piores expectativas. 

“Essas eleições ficarão marcadas como aquelas em que, a cada 3 segundos, pelo menos um jornalista foi agredido nas redes sociais, revelando um ódio difuso à imprensa por parte de movimentos antidemocráticos, que se manifestou antes e durante a campanha, e que segue se manifestando desde o fechamento das urnas.“

RSF pesquisa ataques online a jornalistas

O trabalho observa que o problema começou antes das eleições, pois a violência online contra jornalistas foi a “marca registrada do governo Bolsonaro“.

Durante os primeiros seis meses de 2021, o número de ataques do chefe de Estado brasileiro contra a imprensa aumentou 74% em relação ao segundo semestre de 2020.

Sua hostilidade contra a imprensa era praticada principalmente (cerca de 80%) em posts no Twitter, onde, para limitar sua própria exposição a críticas, Bolsonaro bloqueou contas de jornalistas, meios de comunicação e organizações como a RSF, bloqueada pelo ex-presidente após a publicação de um relatório sobre seu assédio contra a imprensa em 2020.

A RSF destaca que o discurso estigmatizante do ocupante do mais alto cargo da República, nas redes sociais mas também em eventos públicos, quando abordado pelos jornalistas, “institucionalizou a violência, incentivou e legitimou a repetição dessas práticas por literalmente milhares de apoiadores de Jair Bolsonaro.“

Os jornalistas que sofreram mais violência online

As contas que mais praticaram violência online contra jornalistas durante a campanha eleitoral tinham em comum os temas apoio ao ex-presidente Bolsonaro, críticas ao candidato Lula e ataques contra a imprensa. 

Os jornalistas mais atacados foram Vera Magalhães (127.990), Ricardo Noblat (107.971), Gabriela Prioli (71.792), Eliane Cantanhêde (60.348), Mônica Bergamo (38.875), Andréia Sadi (31.931), Reinaldo Azevedo (30.518), Miriam Leitão (26.001), Guilherme Amado (22.839),Juliana dal Piva (20.567) e Cynara Menezes (19.853).

Muitos dos ataques foram de natureza misógina, como mostram as palavras mais encontradas nas postagens agressivas. 

O estudo constatou também que alguns jornalistas apoiadores do ex-presidente Bolsonaro desempenharam o papel de influenciadores contra outros profissionais da imprensa.

“Suas contas serviram e continuam a servir para amplificar os ataques contra aqueles que apoiam hoje o presidente Lula“, diz a RSF. 

O estudo identificou o que a Repórteres Sem Fronteiras classificou como “membros do bando“, divididos em dois perfis de agressores: autoridades públicas e influenciadores ligados ao campo político do ex-presidente Jair Bolsonaro, com grande número de seguidores e repercussão relevante nas redes, e usuários “desconhecidos”.

Quando o ex-presidente ou algum influenciador faziam uma postagem de teor hostil a um/a jornalista ou meio específico/a, era como se um comando fosse dado: a quantidade de ataques àquele jornalista ou veículo por usuários comuns aumentava exponencialmente.

Três postagens do ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro e então candidato a deputado federal por São Paulo, Mário Frias, contra três jornalistas diferentes, na semana do 7 de setembro, foram citadas com exemplo.

Elas alcançaram respectivamente 1,2 milhão, 823 mil e 794 mil perfis no Twitter.

Embora a maior parte de postagens ofensivas tenha sido feita por usuários comuns, os pesquisadores encontraram sinais de comportamento  não compatível com uma atuação orgânica, como perfis criados há pouco tempo, com poucos seguidores, sem foto de perfil e com  alto número de postagens em intervalos pequenos de tempo. 

A identificação de contas com alguma automação em sua operação também sugere que existem determinados atores com interesses políticos, recursos financeiros e capacidade técnica mobilizados para promover um ambiente de descrédito generalizado à imprensa nas redes.

Jornalistas x jornalistas 

O relatório apontou ainda o papel de influenciadores que jornalistas apoiadores do ex-presidente Bolsonaro desempenharam em ações hostis contra outros profissionais da imprensa.

E que ao se pronunciarem contra “colegas”, muitos fomentam que outras pessoas postem comentários em suas postagens agredindo a imprensa. 

A pesquisa aponta ainda o risco de a violência online contra jornalistas que se intensificou no governo de Jair Bolsonaro sair das redes para entrar na vida real. 

O exemplo citado foi o jornalista Tereza Cruvinel, cercada pelo que ela chamou de “uma turba irada”, durante a cobertura dos atos em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. 

Tereza teve seu celular tomado e foi obrigada, sob coação, a apagar vídeos. Sofreu ofensas misóginas e agressão física. Alcançou a barreira policial e pediu apoio.

Mesmo depois de informar que era jornalista, os policiais apontaram fuzis para ela e a mandaram recuar, junto com seus perseguidores.

Em outro momento, ao fazer uma entrada ao vivo, foi cercada por homens que a seguraram pelos braços e disseram que a iriam “ensinar a fazer jornalismo”. Ela teve sua foto divulgada em grupos bolsonaristas nas redes sociais para que fosse assediada.

Soluções para a violência online contra jornalistas

A Repórteres Sem Fronteiras destaca que a escala, o alcance e a frequência da violência online contra a imprensa estão entre os grandes desafios das democracias modernas – “sobretudo daquelas ameaçadas cotidianamente pelo ascenso do autoritarismo e da extrema-direita“. 

E faz recomendações para combater o problema, que envolvem sociedade, Estados e plataformas digitais:

  • Reconhecimento, pelos Estados, de que ameaças e outras formas de abuso online constituem um ataque direto à liberdade de imprensa, um dos pilares da democracia.
  • Reforço de políticas públicas e o arcabouço legal para restringir o assédio a jornalistas online, e aplicá-las sistematicamente, com especial atenção à violência contra mulheres jornalistas.
  • Legislação sobre assédio coletivo que permita responsabilizar todos os participantes de uma campanha de ataques online.
  • Mudar a atual dinâmica das redes sociais, que trabalham com análises individualizadas de conteúdo e restringem apenas postagens que apelem diretamente à violência física, sem preocupação específica para proteger o exercício do jornalismo.
  • Aumentar o número de moderadores que falem o idioma do país e remover mais rapidamente  conteúdos de ódio e contas criadas exclusivamente com esse objetivo.

A RSF critica o modelo de negócios das plataformas, por “seguir priorizando o engajamento dos usuários a qualquer custo, em busca de dados a serem coletados e do lucro por eles gerado“.

Para a organização, o discurso das big techs sobre “garantir um debate público saudável” não passará de retórica enquanto essas mudanças não forem adotadas. 

O relatório completo pode ser visto aqui.