Enquanto podcasts de crimes reais como “The Serial” provaram a injustiça de algumas condenações, o programa australiano “The Teacher’s Pet” ajudou a condenar o professor Chris Dawson pelo assassinato de sua esposa, ocorrido 40 anos antes.

A esposa de Chris, a enfermeira Lynette Dawson, desapareceu sem deixar vestígios em 1982 na cidade em que o casal morava, em Sydney.

Em novembro de 2022, ele foi sentenciado a 24 anos de prisão. Como tem 74, estará com 92 quando for elegível para liberdade condicional.

Podcast sobre assassinato foi baixado mais de 60 milhões de vezes

Lynette deixou para trás duas filhas e não ter levou mala, joias e nem suas lentes de contato. Seu corpo nunca foi encontrado e a investigação não conseguiu comprovar seu assassinato.

Com o inquérito arquivado, Chris continuou sua vida normalmente e casou com a babá das filhas, uma estudante de 16 anos da escola em que ele era professor de rúgbi e com a qual mantinha um relacionamento extra-conjugal.

Tudo correu bem durante quatro décadas. Até que um jornalista e seu podcast se colocaram no seu caminho.

O jornalista Hedley Thomas só tomou conhecimento do caso em 2001, quase vinte anos depois do assassinato. Mas naquela época, poucos tinham ouvido falar de Lynette Dawson, que nem era reconhecida oficialmente como morta.

Thomas só passou a investigar o caso mais a fundo a partir de 2016. E conforme ele investigava, mais sua perplexidade crescia. Lynette desapareceu sem levar dinheiro e sem qualquer compromisso agendado. Não fez contato supostamente com ninguém – exceto o marido.

Em entrevista à principal emissora de TV australiana, a ABC, o autor do podcast sobre o assassinato revelou seu espanto sobre a demora para desmascarar o assassino:

“Isso é completamente ridículo. As pessoas perceberiam isso hoje”.

O resultado da investigação deu origem ao podcast “The Teacher’s Pet”, que alcançou um enorme sucesso, com mais de 60 milhões de downloads e chegou ao primeiro lugar entre os mais seguidos não só na Austrália mas também no Reino Unido, Canadá e Nova Zelândia.

Dezessete capítulos de uma “aula de jornalismo investigativo”

A série tem 17 capítulos, lançados pelo jornal The Australian a partir de maio de 2018.

Dois outros capítulos foram adicionados no final de 2018 à medida que o caso evoluiu. O primeiro cobriu uma nova escavação em busca de provas na antiga casa dos Dawsons em Bayview, que o jornal Sydney Morning noticiou como tendo sido motivada pela pressão pública provocada pelo podcast.

O segundo detalhou a prisão de Dawson em 5 de dezembro de 2018 por detetives do esquadrão de homicídios de Queensland.

O décimo-sétimo episódio foi veiculado em abril de 2019, quando Thomas, seguindo recomendação da promotoria, decidiu suspender a produção do programa e remover o download antes do início do processo judicial que culminaria com a condenação do assassino.

Durante a série o jornalista entrevistou parentes, vizinhos e amigos de Lynette Dawson, e até a adolescente que tinha a metade da idade de Lynette ao se tornar a segunda esposa do assassino, ressaltando as falhas da investigação policial.

O podcast também denunciou práticas de assédio sexual e de relações inadequadas entre professores e alunos em Cromer High, escola onde David Dawson lecionava, e em outros colégios públicos de Northern Beaches.

Isso motivou a abertura de uma investigação policial para apurar tais denúncias nas escolas mencionadas pelo programa.

A série foi reconhecida com o maior prêmio do jornalismo australiano, o Gold Walkley Award, sendo considerada pelos juízes como “uma aula de jornalismo investigativo”.

Culpado foi acusado pelo assassinato poucos meses após veiculação do podcast

Quanto a Chris Dawson, são ressaltadas as inconsistências em seus depoimentos, o relacionamento extra-conjugal, as suspeitas de abusos físicos cometidos por ele contra sua esposa e alegações de que ele que teria pensado em contratar um assassino para matá-la.

O podcast o retrata como um assassino e inclui especulações de como ele poderia ter se livrado do corpo da esposa.

Além disso, critica duramente a relutância da direção do Diretor do Ministério Público em acusar Chris Dawson, depois de ouvir investigadores, o comissário de polícia e o legista que presidiu um dos dois inquéritos que concluíram que Lynette estava morta, e que provavelmente teria sido assassinada por uma pessoa de suas relações.

Poucos meses após o lançamento do podcast, Chris Dawson foi finalmente acusado. Mas ao mesmo tempo em que renovou a esperança de justiça para que o assassino pagasse pelo que fez, o podcast ironicamente quase serviu para que sua defesa o fizesse escapar mais uma vez da justiça.

Defesa do assassino argumentou que podcast não permitiria julgamento justo

Com a reabertura do caso, os advogados de Dawson buscaram seu novo arquivamento alegando – até a Suprema Corte – que o podcast não permitiria que ele tivesse um julgamento justo.

Eles argumentaram que o podcast continha uma série de especulações que não poderiam ser consideradas como prova em um julgamento de assassinato e que a enorme repercussão da série poderia influenciar os depoimentos das testemunhas e o próprio veredito dos jurados.

Com isso, conseguiram duas vitórias: além de um adiamento para aguardar que a repercussão esfriasse, conseguiram que fosse concedido a Dawson um julgamento perante um único juiz, livrando-o de um júri.

Essas decisões beneficiaram Dawson de duas formas. Durante o atraso, potenciais testemunhas morreram. E julgamentos perante um único juiz tendem a ser mais técnicos, com uma definição mais estrita do que constitui uma dúvida razoável em relação às provas.

Pressão gerada pelo podcast ajudou na condenação pelo assassinato

No dia 30 de agosto de 2022, quarenta anos após o desaparecimento da vítima, o juiz Ian Harrison, da Suprema Corte de Nova Gales do Sul, julgou Chris Dawson culpado pelo assassinato da esposa, impulsionado pela paixão pela babá de suas filhas, com a qual se casou após o crime.

Sua sentença foi anunciada em novembro de 2022.

Apesar de o juiz ter desconsiderado muitas das novas informações que o podcast revelou e ter afirmado que a série “pode, no todo ou em parte, ter privado algumas evidências de sua utilidade”, a reabertura do caso e por fim a condenação foram considerados uma consequência da pressão pública gerada pelo programa.

Entre os que consideram isso está o irmão de Lynette, Greg Simms, que logo após a sessão de anúncio do veredito agradeceu a Thomas por dar voz à vítima e ajudar a limpar o nome da irmã.

Em entrevista ao The Australian, o autor do podcast descreveu a condenação como um “alívio incrível” e reforçou a importância do jornalismo investigativo para fazer prevalecer a justiça:

“Essa ideia de que o sistema de justiça pode gerenciar tudo é uma mentira. Sempre há mais material, muitas testemunhas com quem você pode conversar, mais evidências que podem ser coletadas. Meu objetivo primordial com esses podcasts é resolver crimes.”