Londres – O motivo alegado para o atraso de um dia, que virou alvo de críticas dos advogados do tabloide Daily Mirror, foi o aniversário da filha Lilibet – mas o príncipe Harry finalmente apareceu nesta manhã no Superior Tribunal de Justiça, em Londres, para depor no processo em que pede reparação por danos causados pelas reportagens baseadas em escutas ilegais e espionagem por detetives.
Aos 38 anos, o Harry desafiador lembra mais a mãe, a princesa Diana, do que o bem-comportado irmão William, que mantém uma relação harmônica com a mídia e segue a cartilha real de não reclamar nem explicar, mandamento da avó Elizabeth II.
Ele processou o jornal contra a vontade da família real, tornando-se o primeiro membro da realeza em 132 anos a prestar depoimento em um tribunal, em um caso que expõe um lado sombrio da história do país: a ferocidade e a falta de limites da imprensa sensacionalista.
O que Harry disse no tribunal
O julgamento começou na segunda-feira (5), e Harry decepcionou ao não aparecer no primeiro dia, por ter voado de Los Angeles, onde vive, no domingo.
O juiz Fancourt disse que ficou “um pouco surpreso” ao descobrir que o duque não estava no tribunal.
Andrew Green, advogado principal do grupo Mirror, que edita o tabloide, acusou Harry de ‘desperdiçar o tempo do tribunal’.
Ele é considerado uma ‘fera” ao interrogar adversários de seus clientes no tribunal, uma experiência que Harry experimenta pessoalmente a partir de hoje.
Nas primeiras declarações no tribunal e na declaração de 49 páginas, ele disse que:
- O comportamento “vil” dos jornais o colocou em uma “espiral descendente”, em que os tabloides constantemente tentavam persuadir um jovem ‘fragilizado’, a fazer algo estúpido que daria uma boa matéria e venderia muitos jornais.
- A mudança para a Califórnia foi “em grande parte” devido à “intrusão constante”.
- “Sinto hostilidade da imprensa desde que nasci.”
- Editores e jornalistas foram responsáveis por “causar dor e perturbação” e “morte inadvertidamente”.
- Tabloides publicavam reportagens muitas vezes erradas, mas intercaladas com trechos da verdade (provavelmente obtidas pelo hackeamento), “criando uma versão alternativa e distorcida de mim e da minha vida para o público em geral.”
- Seu círculo de amigos diminuiu à medida que mais informações sobre sua vida privada apareciam nos jornais.
- Os jornais do Mirror Group teriam feito 289 pagamentos a investigadores particulares por informações relacionadas a ele e pessoas próximas.
Referindo-se a um trecho da declaração escrita que fala de “sangue nas mãos”, ele respondeu ao advogado que não apontava um jornalista em particular, mas sim toda a imprensa sensacionalista.
Surpreendentemente para um membro da realeza, Harry também atacou o governo e uma suposta conivência da imprensa com o poder em sua declaração escrita:
“Em nível nacional, no momento, nosso país é julgado globalmente pelo estado de nossa imprensa e nosso governo – ambos os quais acredito que estão no fundo do poço.
A democracia falha quando sua imprensa falha em examinar e responsabilizar o governo e, em vez disso, escolhe ‘ir para a cama’ com ele para que possa garantir o status quo.”
No interrogatório, Andrew Green questiona reportagens apresentadas pela acusação como tendo sido alvo de escuta ou espionagem, alegando que eram fatos públicos, publicados por outros jornais ou até divulgados pela própria família real.
Harry respondeu de forma serena, negando algumas alegações e em outras apontado que alguns dos fatos contidos nas reportagens só poderiam ter sido obtidos por meios ilegais, pois não eram públicos.
No caso de fatos que foram notícia também em outros jornais, Andrew Green questionou o príncipe Harry sobre se ele também está acionando judicialmente os demais, podendo ser uma tática para sugerir uma perseguição contra o Mirror especificamente.
O príncipe Harry se referiu espontaneamente a um boato sobre a possibilidade de ser filho do oficial do exército James Hewitt, que teve um romance com a princesa Diana, ao recriminar tentativas de roubar seu DNA para testes.
Ele também falou do irmão, William, ao ser questionado pelo advogado sobre uma reportagem relatando desentendimentos entre os dois.
“´É o tipo de reportagem que semeia desconfiança entre irmãos”
Ida de Harry ao tribunal expõe práticas da imprensa
O interesse no processo do príncipe Harry contra o grupo MGM, um dos maiores grupos de mídia do Reino Unido, que edita o Daily Mirror, vai além do fato de ser um membro da realeza, até porque Harry não está sozinho.
Junto com ele estão o ator Michael Turner, da série Coronation Street; Fiona Wightman, ex-esposa do comediante Paul Whitehouse; a cantora Cheryl, o jogador de futebol e apresentador de TV Ian Wright e o espólio do falecido cantor George Michael.
O interesse deve-se também ao fato de a ação trazer de volta um passado que poucos querem lembrar, sobretudo os jornais e os jornalistas que praticaram atos condenáveis à luz do bom jornalismo.
Os tabloides britânicos – que ‘inspiraram’ publicações em outros países – tornaram-se referência por não pouparem esforços para obter notícias capazes de vender muitos exemplares – e atualmente, de “quebrar a internet” e viralizar nas redes sociais.
No Reino Unido, essas práticas tiveram um certo “basta” em 2011, quando o jornal News Of The World foi fechado devido a um escândalo de hackeamento de celebridades e de mensagens de uma jovem assassinada.
A publicação pertencia ao magnata da mídia Rupert Murdoch, também dono do The Sun, também alvo de um processo movido pelo príncipe Harry.
O caso deu origem a um inquérito liderado pelo ex-juiz Brian Levinson, resultando em recomendações de mudanças nas práticas do jornalismo do país, conhecido pela agressividade dos tabloides.
Um dos jornalistas mais famosos do país, Piers Morgan, é um dos nomes expostos no processo. Ele era editor do Mirror quando as práticas ilegais ocorreram, mas afirma nunca ter tido conhecimento delas.
No depoimento desta manhã na Suprema Corte, Harry disse que o “comportamento do jornalista o deixa fisicamente doente”.
Harry x Daily Mirror
O processo em que Harry está depondo no tribunal é um dos três que ele move atualmente. O MGM é uma divisão do Reach, um dos maiores grupos de mídia britânicos.
Os acusadores alegam que as informações sobre eles foram coletadas de forma ilegal entre 1996 e 2011. Hackers ligavam para os números telefônicos de celebridades, desvendavam a senha de acesso à secretária eletrônica e assim ouviam todas as mensagens gravadas.
O Mirror já fez acordos com famosos por causa dessa prática, que admitiu ter utilizado. Agora, se defende argumentando que o prazo para reclamações já havia se esgotado quando o novo processo foi aberto, em 2019.
A maioria das queixas de Harry está relacionada a seus relacionamentos com as ex-namoradas Chelsy Davy, Cressida Bonas, Laura Gerard-Leigh e Natalie Pinkham – incluindo detalhes de seus sentimentos em relação a elas, seus planos e conversas.
Davy teria terminado o relacionamento de cinco anos por causa da invasão de privacidade.
Em maio, a defesa do MGM fez um pedido de desculpas a Harry, admitindo que contratou um detetive para seguir seus passos em uma casa noturna.
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As chances de o príncipe Harry ganhar a causa, embora as práticas tenham sido admitidas, são colocadas em dúvida por analistas devido ao prazo em que a ação foi proposta.
Harry se defende argumentando que a família real pediu que ele não abrisse processo, justamente para não ter que comparecer em um tribunal, como está acontecendo agora.
Mesmo não vencendo, o príncipe ajudou a dar visibilidade a práticas adotadas no passado e a questões como limites para invasão de privacidade de pessoas famosas.
E não apenas no Reino Unido. O mais recente embate de Harry e Meghan com a mídia aconteceu em Nova York, quando eles denunciaram o assédio de fotógrafos de celebridades (papparazi).
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