Londres – A cobertura da imprensa internacional e local sobre o acidente com o avião que – segundo as autoridades russas – transportava o líder do grupo de mercenários Wagner, Yevgeny Prigozhin, está sendo marcada por mais perguntas do que respostas, em sintonia com a desinformação e a propaganda estatal que caracterizam a Rússia. 

Prigozhin estava mesmo no avião? O Embraer foi derrubado? Se foi, por um míssil ou uma bomba? Vladimir Putin deu a ordem para eliminar o ex-aliado e protegido que há dois meses o desafiou com um motim e chegou a ameaçar invadir Moscou para derrubar o presidente russo? 

Enquanto as incertezas dominam o noticiário e a mídia não se se arrisca a cravar o que de fato aconteceu, Putin não se manifestou nas primeiras horas nem na manhã do dia seguinte ao acidente, nem o Kremlin. A imprensa estatal foi lacônica, registrando os fatos de forma resumida. Mas o recado de força de Putin foi dado no momento da explosão. 

Prigozhin e a propaganda da Rússia 

Yegveny Prigozhin foi um aliado fundamental para Vladimir Putin com seu exército de mercenários e também como executor de operações de propaganda estatal e desinformação sobre a Rússia em vários países. E sua morte também está sendo percebida como um elemento de propaganda. 

Na hora em que a mídia global registrava o acidente, Putin assistia a um concerto transmitido pela televisão em homenagem ao 80º aniversário da Batalha de Kursk, segundo o think thank americano Institute For the Study of War (ISW) – que comparou a situação à da principal TV estatal soviética exibindo o balé Lago dos Cisnes em agosto de 1991, quando a União Soviética entrou em colapso. 

O ISW fez um relatório sobre o acidente e a suposta morte de Prigozhin e do fundador do Wagner, Dmitry Utkin, analisando o significado do acontecimento para a propaganda estatal russa e como os veículos estatais estão cobrindo a história. 

O relatório, feito com base em conversas com fontes militares e da sociedade russa, segundo a organização, está sendo citado em várias reportagens sobre o caso. Mas nem o instituto dá certeza absoluta do que ocorreu. Um dos capítulos da análise diz: 

É quase certo que Putin ordenou ao comando militar russo que derrubasse o avião de Prigozhin.

O ISW classifica de “improvável” a hipótese de que a queda do avião tenha sido acidental. E observou o fato de ter acontecido no mesmo dia em que a agência de notícias do Kremlin, RIA Novosti, informou  que Putin demitiu formalmente o general do Exército Sergei Surovikin, alinhado ao grupo Wagner, como comandante das Forças Aeroespaciais Russas e o substituiu pelo coronel-general Viktor Afzalov:

“A confirmação oficial da demissão de Surovikin pela mídia estatal russa no mesmo dia do assassinato de Prigozhin provavelmente não é coincidência.

O Kremlin pretende provavelmente que ambas as punições divulgadas enviem uma mensagem clara de que aqueles que estiveram envolvidos na rebelião de 24 de Junho foram tratados e que o desafio de Wagner à liderança russa é um assunto resolvido.”

Na análise do instituto, o presidente da Rússia teve sua liderança enfraquecida com o motim de Yevgeny Prigozhin em junho, e precisava de uma sinalização forte, como parte de sua operação de propaganda: 

Putin precisava de uma vingança ostensiva contra Prigozhin, não só para provar que ele não é um líder fraco, mas também para apoiar os seus militares – que, aos olhos de muitos russos, não viram a justiça ser realizada pelos acontecimentos de 24 de junho.”

” O amplo espaço de informação russo absteve-se de comentar as razões por trás do acidente, com apenas algumas fontes ligando o incidente ao Kremlin ou ao Ministério da Defesa russo”, registra o relatório, que também identificou os efeitos do acidente para a ‘marca Wagner’. 

“Prigozhin e Utkin foram inegavelmente os rostos de Wagner, e suas mortes terão impactos dramáticos na estrutura de comando de Wagner e na marca Wagner. Os comandantes e combatentes do Wagner podem começar a temer pelas suas vidas ou ficar desmoralizados.

As incursões do MoD russo e do Kremlin nas operações da Wagner e a ausência de Prigozhin – que lutaria por novas oportunidades de negócio para o Wagner – podem levar  à degradação do grupo.”

O momento teria sido escolhido cuidadosamente pela Rússia de Putin, depois de dois meses de um noticiário desfavorável para o Wagner, registrando dificuldades de pagamento dos mercenários e redução de suas operações de guerra. 

Além do simbolismo da data – exatamente dois meses após o motim de junho – Putin pode ter concluído que do ponto de vista da propaganda, Yevgeny Prigozhin já estava suficientemente dissociado da imagem do Wagner, e por isso sua morte poderia não transformá-lo em um mártir. 

A morte de Prigozhin na mídia estatal e alinhada 

Um dos primeiros a noticiar o acidente foi o canal pró-Kremlin no Telegram VChK-OGPU, informando que tanto Prigozhin quanto seu braço direito, o primeiro comandante do Grupo Wagner, Dmitry Utkin, haviam morrido.  

O canal de TV pró-Kremlin Tsargrad também noticiou a morte, antes mesmo de as autoridades a confirmarem. 

No dia seguinte do acidente com o avião que Yvgeney Prigozhin viajava, a principal agência de notícias russa, a estatal Tass, destacava em sua home page a cúpula dos Brics, que está acontecendo na África do Sul – e que não teve a presença de Vladimir Putin devido ao risco de prisão do líder da Rússia 

Na versão em inglês, duas chamadas menores falavam do acidente, apenas registrando que Prigozhin é listado como passageiro de um avião que caiu na região russa de Tver. 

Já na versão em russo, a Tass noticiou um relatório do serviço de acompanhamento de voos Flightradar informando que o Embraer ganhou e perdeu altitude várias vezes em um curto espaço de tempo antes de começar a cair, mas não associa esse comportamento a uma possível causa. 

No entanto, a abordagem pode estar em linha com uma possibilidade levantada pelo Institute For Studies of War: a de que o Kremlin poderia adotar uma comunicação sobre o acidente que desvie a responsabilidade oficialmente de militares russos: 

Um microblogger afiliado ao Kremlin observou que o Comitê de Investigação pode escolher o lançamento “errôneo” de sistemas de defesa aérea como a versão principal do evento, dados os alegados ataques de drones ucranianos em Moscovo.

Uma fonte interna russa afirmou que o acidente provavelmente será enquadrado como um ato terrorista ocorrido a bordo, e o deputado da Duma Russa, Yevgeniy Prigozhin, já fez eco a esta narrativa no espaço de informação russo.

 A RT (Russia Today), principal emissora de TV e de notícias online, que está bloqueada em vários países e regiões do mundo, como a Europa, destaca a morte de Yevgeny Prigozhin em sua home page.

Mas igualmente sem especular sobre causas. Em uma reportagem intitulada “O que sabemos até agora” publicada na versão internacional ela narrou os fatos e explica o motim de junho. 

Rede estatal Russia Today (RT) noticiou a morte de Evgeny Prigozhin em seu site

Mídia independente russa no exílio 

Vários veículos de imprensa de oposição ao regime de Vladimir Putin operam hoje no exílio. Alguns já tinham deixado o país antes da guerra com a Ucrânia, que fez com que a repressão à mídia independente se agravasse ainda mais. 

Um deles é o Meduza, que funciona em Riga, na Letônia. A notícia principal do site trouxe duas interrogações que não deixam espaço para uma explicação de acidente: 

O avião de Prigozhin foi abatido por um míssil? Ou havia uma bomba a bordo?

 A reportagem reúne os fatos sobre o caso e afirma: “resta apenas uma pergunta: a explosão aconteceu dentro ou fora do avião”? 

Em outra reportagem, o Meduza cita opiniões de fontes sobre o ocorrido, e uma delas faz eco com uma hipótese que parece roteiro de filme, mas não seria impossível na Rússia em que a desinformação é galopante: a de que Yevgeny pudesse estar vivo. 

“Ele é um malandro, um troll. Ele tem informantes em diversas estruturas, então temos que esperar.” 

O Novaya Gazeta, versão europeia do jornal fundado pelo detentor do prêmio Nobel da Paz de 2021, Dmitry Muratov, também se limitou nas primeiras horas a registrar os fatos e a lista dos passageiros do voo.

E em três artigos separados, conta a história do fundador do grupo Wagner, destacando seu papel nas operações de propaganda e desinformação da Rússia. 

Os canais do grupo Wagner 

O Grupo Wagner tinha uma organização de mídia, Patriot Media, que foi fechada após o motim,  depois que vários de seus canais foram bloqueados pelo governo russo. 

“Estou anunciando nossa decisão de fechar e deixar o espaço de informação do país”, disse Yevgeny Zubarev, diretor do site de notícias Patriot, Ria Fan, em um vídeo de sábado postado nas redes sociais. 

Um dos braços era a Internet Research Agency, a chamada “fábrica de trolls” criada para interferir nas eleições dos EUA. 

Mas Yevgeny continuava postando no Telegram. Sua última aparição foi em um vídeo supostamente gravado na África, onde o Wagner estaria tentando reforçar suas operações. 

Depois da notícia de sua morte, grupos no Telegram como o Wagner Group postaram mensagens dizendo estar aguardando instruções sobre os próximos passos, e não pareciam crer na hipótese de sobrevivência do líder, pelo menos oficialmente. Ou, pensando em teorias conspiratórias, poderia ser uma estratégia. 

Uma postagem faz uma homenagem ao que o grupo chama de “herói da Rússia”. 

Grupo Wagner lamentou a morte de seu líder, Evgeny Prigozhin, pelo Telegram

O texto diz:

“O chefe do Grupo Wagner, Herói da Rússia, um verdadeiro patriota de sua pátria – Evgeny Viktorovich Prigozhin morreu como resultado das ações de traidores da Rússia.”

E finaliza com uma declaração que beira o fanatismo: “Mesmo no Inferno ele será o melhor! Glória à Rússia!”