Londres – Nos primeiros dias após a tomada do controle do Afeganistão pelo Talibã, em 15 de agosto de 2021, os líderes do grupo fundamentalista islâmico chegaram a sinalizar tolerância com o jornalismo independente e com mulheres trabalhando na mídia, mas o que se viu em seguida foi um desmonte quase completo da imprensa no país.
No terceiro aniversário da entrada do grupo em Cabul, organizações de liberdade de imprensa estão fazendo o balanço dos atos de repressão ao jornalismo independente, que empurraram muitos profissionais do país ao exílio e fizeram desaparecer mais da metade dos veículos de mídia, segundo a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ).
A entidade afirma que quase 80% das jornalistas perderam seus empregos “devido às restrições draconianas do novo regime”. Os exilados enfrentam dificuldades em outros países, enquanto os que permanecem enfrentam um ambiente hostil caracterizado por ameaças, intimidações, detenções arbitrárias e violência.
Três anos de ‘graves injustiças’ do Talibã
Um levantamento da Repórteres Sem Fronteiras aponta que nesses três anos, 141 jornalistas foram presos ou detidos, embora neste momento não exista nenhum atrás das grades.
Mas isso não diminiu a gravidade da situação, pois pode ser reflexo da desistência de muitos dos que inicialmente se opuseram à repressão.
“Graves injustiças são a marca registrada do governo do Talibã”, disse o coordenador do Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ) para a Ásia, Beh Lih Yi.
“A repressão implacável do Talibã levou os poucos veículos de mídia restantes no Afeganistão ao limite.
A comunidade internacional deve ficar ao lado do povo afegão, e os governos estrangeiros devem agilizar os processos de reassentamento e apoiar jornalistas no exílio para que eles possam continuar seu trabalho.”
No último ano, de acordo com o CPJ, o Talibã deteve pelo menos 16 jornalistas afegãos e estrangeiros, fechou quatro estações de rádio e TV e baniu uma emissora afegã sediada em Londres.
“A agência de inteligência do Talibã, a Diretoria Geral de Inteligência , juntamente com o Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício, estão na vanguarda da repressão contínua à imprensa.”
A represssão continuou em 2024. A IFJ contabilizou 17 licenças de transmissão de 17 dos 14 meios de comunicação no leste de Nangarhar suspensas pela Autoridade Reguladora de Telecomunicações Afegã (ATRA) até 22 de julho.
O Ministério das Comunicações e Tecnologia da Informação do Talibã informou aos meios de comunicação elas estavam sendo temporariamente retiradas sob o argumento de não pagamento de impostos.
Duas estações de TV privadas, Noor TV e Barya TV, sediadas em Cabul, foram suspensas em 17 de abril, apontadas como violadoras de valores nacionais e islâmicos, relatou a entidade.
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Violência contra jornalistas e repressão a mulheres
O Afghan Independent Journalists Union (AIJU) registrou 85 casos de violência contra jornalistas em 2023, incluindo diferentes formas de agressão.
Pelo menos um dos detidos foi severamente espancado. O Talibã também proibiu a transmissão de vozes femininas.
A Federação Internacional de Jornalistas afirma que a situação das jornalistas no Afeganistão é “particularmente terrível”, com apenas 600 delas ativas em março de 2024. Havia 2.833 mulheres antes de agosto de 2021.
“As jornalistas sob o governo do Talibã são forçadas a cobrir o rosto na televisão, foram excluídas de eventos de imprensa, recebem salários mais baixos e enfrentam o risco de suas vozes serem banidas no rádio.”
A IFJ descobriu que não há jornalistas mulheres operando no sul e sudeste do Afeganistão.
Em abril, três jornalistas de rádio foram detidas ilegalmente por cinco dias na província de Khost, no sudeste, devido a alegações de que a estação de rádio transmitia música e chamadas de ouvintes mulheres.
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Redes sociais no alvo do Talibã
O Talibã também implantou controles rigorosos em plataformas de mídia social, incluindo o Facebook, uma fonte crucial de notícias e informações no país, de acordo com a IFJ.
“Jornalistas afegãos agora são obrigados a ter suas matérias aprovadas por oficiais do Talibã e são impedidos de transmitir ou postar conteúdo considerado “contrário ao islamismo” sob as recentes “11 Regras para Jornalistas” emitidas pelo Talibã.”
Enquanto algumas plataformas online continuam suas atividades com a aprovação e apoio do governo do Talibã, aquelas que operam de forma contrária aos interesses do regime enfrentam censura e filtragem, ou restrição seletiva de acesso a certos conteúdos ou plataformas, bem como o risco de revogação de suas licenças, de acordo com a entidade.
No terceiro aniversário da tomada do Afeganistão pelo Talibã, a IFJ “declarou solidariedade com todos os jornalistas afegãos que continuam a perseverar sob um regime que tentou sistematicamente desmantelar a liberdade de imprensa e a mídia independente”.
“A censura incessante, o assédio, a discriminação e as restrições draconianas do Talibã dizimaram a mídia, mas os jornalistas do Afeganistão permanecem firmes em seu compromisso com seu trabalho vital.”
Promessas do Talibã não cumpridas
Célia Mercier, Chefe do Escritório do Sul da Ásia da Repórteres Sem Fronteiras, lembrou que quando o Talibã retomou o poder em agosto de 2021, seu porta-voz Zabihullah Mujahid disse à entidade:
‘Jornalistas […] não são criminosos […]. Não haverá ameaça contra eles […]. Em breve, eles poderão trabalhar como antes.”
No entanto, aponta ela, “o regime mostrou uma face completamente diferente, sombria e tirânica, em sua perseguição a jornalistas, semeando o terror por meio de uma sequência de prisões e detenções.
Em nota, a RSF condenou a repressão e apelou ao líder supremo do Talibã, Mullah Haibatullah Akhundzada, para acabar com as “prisões hediondas de profissionais da mídia” e restaurar o direito à informação no país.
O Afeganistão ocupa o 180º lugar no Global Press Freedom Index da Repórteres Sem Fronteiras, que avalia a situação da liberdade de imprensa em 180 países.
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