Londres – Cobrir guerras, tragédias humanitárias, catástrofes ambientais e crimes faz parte do jornalismo, mas a conta do trauma pode ser alta para os jornalistas – um peso agravado por assédio digital e perseguições políticas no mundo real.
Em março deste ano, um âncora da rede independente Iran TV, com sede em Londres, saiu de casa para trabalhar e foi esfaqueado. Ele sobreviveu ao ataque, atribuído pela polícia britânica a mercenários contratados por forças de segurança do regime iraniano para intimidar o canal, que vem sendo alvo de ameaças a ponto de ter transferido suas operações para Washington durante seis meses por recomendação da Scotland Yard.
Este é um exemplo extremo de outro fator de burnout para profissionais de imprensa: a segurança. Uma pesquisa do Reynolds Journalism Institute apontou que quase metade dos jornalistas acha que o trabalho se tornou perigoso.
O RJI não identificou se o motivo principal do temor é o risco pessoal ou se o medo deve-se aos ataques generalizados ao jornalismo e a jornalistas que se tornaram comuns no mundo.
Ainda assim, sugeriu que o sentimento relacionado a um deles ou a ambos contribui para o esgotamento mental que afasta profissionais da atividade em todo o mundo.
Trauma em debate no Festival de Jornalismo de Perugia
Um dos painéis do Festival Internacional de Jornalismo de Perugia, realizado em abril, abordou os efeitos da cobertura de situações traumáticas como guerras e desastres naturais sobre a saúde emocional dos jornalistas.
A sessão foi mediada por Gavin Hess, consultor de treinamento e inovação do Dart Center para Jornalismo e Trauma, da Universidade Columbia, e teve a participação de jornalistas de três países com perspectivas bem diferentes.
Rawan Damen dirige a Associação de Jornalistas Investigativos Árabes, que desde outubro passado vem apoiando profissionais de imprensa em Gaza, submetidos a condições extremas para continuar trabalhando e até sobrevivendo.
Rajneesh Bandhari, fundador e diretor da rede de jornalistas investigativos do Nepal, vive em um pais em que as violações da liberdade de imprensa são frequentes e teve a experiência de cobrir o terremoto que devastou o país em 2015 para organizações de mídia estrangeiras.
No meio da tragédia humanitária que vitimou seu próprio povo, era pressionado a entregar matérias sem contar com abastecimento de energia elétrica ou conexão à internet.
Leia também | ‘Breaking up with the news’: maioria dos jornalistas americanos já pensou em largar a profissão devido ao burnout
Impacto do trauma não apenas para quem cobre guerras
Em um ambiente mais tranquilo – e quase envergonhada por isso diante dos colegas – Annie Kelly, editora de Direitos e Liberdade do The Guardian, relatou sua vivência no trabalho com jornalistas em países como Iêmen e Afeganistão.
Pode parecer longe da realidade brasileira, mas o abalo ao equilíbrio emocional capaz de levar ao burnout não afeta apenas quem cobre guerras ou terremotos. Jornalistas escalados para fazer reportagens sobre violência urbana no Brasil ou para investigarem violações de direitos humanos são igualmente vulneráveis a esses efeitos.
O consenso foi que o impacto para jornalistas cobrindo pautas que envolvem sofrimento existe tanto para quem está no front quanto para os que estão fisicamente protegidos, dentro de redações. Mas ele acontece de forma diferente.
Rees disse que em seu trabalho no Dart Center observa vários reflexos do trauma, alguns de gravidades diversas.
“Jornalistas que trabalham vendo imagens violentas muitas vezes apresentam dificuldades de concentração, e isso é um pequeno efeito do trauma”.
Quem decide a hora de parar?
Os participantes refletiram sobre formas de mitigar esse impacto. Uma delas é o chefe demonstrar sensibilidade e perguntar como o profissional está se sentindo, deixando-o livre para fazer uma pausa ou até se afastar da cobertura.
Mas isso nem sempre é simples em se tratando de jornalistas, dotados de senso de missão.
O estudo do Reynolds revelou que 88% dos profissionais acham que o trabalho que fazem é essencial para a democracia.
Annie Kelly comentou que em geral a resposta a essas perguntas é quero seguir adiante e continuar reportando os acontecimentos”.
Rawan Damen vê a questão sob outra perspectiva: em alguns casos, mesmo que a resposta à pergunta “você está bem?” seja “sim”, isso não é necessariamente verdade. E há momentos em que, queira ou não o jornalista, é preciso fazer com que ele pare a fim de “recarregar a bateria”.
Com a experiência no Dart Center, Gavin Hess concordou com a necessidade da “recarga”, e lembrou que “auto-cuidado não é autopiedade, e sim autopreservação”, garantindo as condições para que o bom jornalismo continue a ser feito.
Leia também | Como evitar o esgotamento na indústria criativa, onde muitas vezes trabalho e diversão se misturam