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Relatório da Unesco pede regulamentação urgente da inteligência artificial para proteger futuro do jornalismo e da própria IA

Smartphone com tela remetendo à IA

Foto: Aidin Geranrekab / Unsplash

A inteligência artificial generativa está impactando profundamente a indústria de notícias e levantando uma questão crítica abordada de frente em um novo relatório da Unesco: sem regulamentação adequada, tanto o jornalismo quanto a própria IA pode ver seu futuro comprometido. 

O relatório IA e o Futuro do Jornalismo: Um Memorando para Stakeholders , de autoria da pesquisadora e professora Anya Schilffer, da Columbia University, alerta para a necessidade urgente de regulamentação sobre os diversos aspectos do uso da IA, incluindo padrões claros que protegem os direitos autorais e garantam uma compensação justa às organizações de mídia de forma para garantir sua sustentabilidade financeira. 

Sem essas medidas, o fluxo de informações confiáveis ​​— essencial para o treinamento de modelos avançados de IA, como os LLMs — pode se tornar escasso, colocando em risco a qualidade e diversidade de conteúdo que alimenta essas tecnologias fundamentais para o futuro da informação, aponta o documento da agência da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 

IAs generativas ‘aprendem’ com conteúdo do jornalismo

O conceito de IA Generativa refere-se a sistemas de inteligência artificial avançados, como os Modelos de Linguagem em Larga Escala (LLMs, na sigla em inglês), um exemplo do ChatGPT, que produz conteúdo semelhante ao humano ao aprender com grandes volumes de dados advindos, entre outras fontes, do conteúdo original de empresas jornalísticas, de criadores e de autores de livros e de obras de arte visuais. 

As ferramentas de IA generativa, capazes de criar textos, imagens e outros tipos de conteúdo, estão sendo incorporadas por diversas redações ao redor do mundo. 

Eles permitem, por exemplo, a análise de grandes volumes de dados e ajudam os jornalistas a encontrar histórias relevantes para cobrir, mas ao mesmo tempo oferecem o risco de disseminação de informações erradas geradas por esses sistemas.

As chamadas “alucinações” da IA ​​— momentos em que a tecnologia gera informações incorretas — tornam imperativo o papel dos humanos na revisão e verificação de dados, evitando a propagação de desinformação, recomenda a Unesco. 

O relatório também observa que os jornalistas não estão apenas se adaptando a essas mudanças, mas assumindo um papel ativo na conscientização do público sobre os riscos e benefícios associados à IA generativa.

As preocupações com a desinformação, especialmente com a disseminação de deepfakes, estão ganhando relevância, sobretudo em contextos políticos sensíveis, como períodos eleitorais, evidenciando a importância de uma maior alfabetização midiática por parte das audiências.

O relatório da Unesco destaca ainda que a IA generativa tem o potencial de transformar o mercado de trabalho de jornalistas e aumentar a desigualdade de renda, à medida que empregos nas áreas de redação, edição e tradução sejam especializados, automatizados ou otimizados.

Impactos econômicos no jornalismo e na qualidade do conteúdo da IA

Mas a principal ameaça ao setor levantado pelo documento da Unesco é a sustentabilidade econômica do jornalismo: as empresas de IA estão usando conteúdo produzido por jornalistas em por empresas de mídia que investem em talentos e em infraestrutura de reportagem para treinar seus modelos sem a obrigação ou remunerado.

Essa prática coloca em risco o modelo de negócios da mídia tradicional, baseado na criação e monetização de conteúdo original, diz o estudo. 

O relatório da Unesco destaca o risco iminente à diversidade cultural e à integridade das informações à medida que as redações enfrentam mais desafios financeiros.

O uso de IA generativa sem acordos adequados de direitos autorais pode resultar na perda de fontes de receita, como assinaturas e publicidade, uma vez que os motores de busca baseados em IA controlam o tráfego para sites de notícias ao apresentarem respostas diretas às perguntas dos usuários, 

Isso coloca a IA em uma posição paradoxal: ao usar dados jornalísticos sem retorno financeiro para as organizações de mídia, ela pode acabar desestabilizando o ecossistema de informações de que depende.

Se a produção de notícias de qualidade for comprometida, os próprios modelos de IA, que se alimentam dessas fontes, também serão afetados.

A escassez de dados confiáveis ​​compromete o desenvolvimento de sistemas de IA robustos, gerando um ciclo prejudicial para ambos os lados.

A regulamentação como solução para os impactos negativos da IA ​​no jornalismo 

Diante dessa situação, o relatório da Unesco faz um chamado para que governos, empresas de IA e organizações de mídia colaborem na busca de uma regulamentação justa.

O objetivo é garantir que os criadores de conteúdo jornalístico sejam devidamente compensados ​​pelo uso de seu trabalho, estabelecendo um mercado para licenciamento e evitando a concentração de poder nas mãos de poucas empresas de tecnologia.

Anya Schiffrin adverte que o futuro do jornalismo — e de outras áreas como cultura e educação — será “virado de cabeça para baixo” pela IA, e defende que a melhor forma de evitar monopólios é preveni-los antes que se formem, em vez de tente desfazê-los depois.

Algumas organizações jornalísticas estão firmando acordos de licenciamento com empresas de IA de destaque para garantir compensações justas pelo uso de seu conteúdo, mas eles estão restritos apenas aos grandes, com alto poder de barganha, como a Associated Press, uma das primeiras a assinar um contrato dessa natureza. 

Outras, como o New York Times, optaram por levar a disputa  à justiça por acharem que os valores oferecidos estavam aquém do que consideram adequado. 

Direitos autorais: o debate sobre ‘uso justo’ pela IA

Um ponto central do relatório da Unesco é a atualização das leis de direitos autorais, ou pelo menos a aplicação rigorosa das regras existentes.

Em países como os Estados Unidos, onde o uso de materiais protegidos por direitos autorais para treinamento de IA muitas vezes se enquadra no conceito de “fair use” (uso justo), a falta de uma compensação clara tem gerado insatisfação entre jornalistas e editores.

Anya Schiffrin ressalta que essa doutrina foi criada muito antes da IA generativa e não foi concebida para lidar com LLMs que “engolem” grandes volumes de dados, como todo o conteúdo de um jornal, e “regurgitam” informações de maneira opaca, sem atribuição ou compensação financeira.

Na Europa, o debate avançou com propostas de regulamentação mais específicas, como o Media Freedom Act e o AI Act, que exigem transparência na geração de conteúdo por IA e estabelecem padrões para o uso de dados.

No entanto, salienta Anya Schiffrin, nenhum dos projetos de lei propostos até agora, incluindo o do Brasil, abordas as questões principais relativas ao jornalismo. 

A especialista discorda da ideia de que a regulamentação sufocaria a inovação, como argumentam as empresas de IA generativa, classificando essa visão como uma “armadilha”.

O relatório afirma que a estratégia de “não amarrar as mãos” de uma indústria emergente e agir apenas quando surgirem problemas é “errada e perigosa” para o jornalismo e para o próprio desenvolvimento da IA.

A necessidade de transparência e diversidade

Outro aspecto abordado pelo relatório da Unesco é a importância de garantir que o uso de IA no jornalismo seja transparente.

As redações devem deixar claro para seus leitores quando uma tecnologia de IA foi utilizada na criação de conteúdo, protegendo a integridade da informação e o direito do público a saber como as notícias são produzidas.

Além disso, a diversidade cultural e linguística deve ser preservada, evitando que a produção de conteúdo jornalístico seja dominada por empresas de IA com recursos tecnológicos avançados.

O risco de monopólio é real, especialmente em países com menos acesso a essas tecnologias, o que pode limitar ainda mais a representatividade de diferentes culturas e vozes no cenário global.

O domínio da língua inglesa nos dados de treinamento da IA Generativa ameaça idiomas e culturas menores.

O relatório da Unesco cita o exemplo de nações como a Islândia, que têm se mobilizado para preservar seu patrimônio linguístico por meio da colaboração com desenvolvedores de IA, enquanto outros países estão implementando esforços para fortalecer a representação e qualidade de línguas indígenas em aplicativos de IA.

Recomendações da Unesco para o jornalismo, governos e empresas de IA 

Para enfrentar esses desafios, o relatório da Unesco faz uma série de recomendações direcionadas tanto às empresas de IA quanto às organizações de mídia e governos. Entre as principais medidas sugeridas, destacam-se:

  • Para as empresas de IA: Adoção de governança baseada em direitos humanos, colaboração com organizações de mídia para criar parâmetros transparentes de compensação e desenvolvimento de sistemas de atribuição de conteúdo que garantam o reconhecimento adequado dos criadores.
  • Para as redações: Implementação de políticas claras sobre o uso de IA, com supervisão humana em todas as etapas do processo de criação de conteúdo, e comunicação transparente com o público sobre o uso dessas tecnologias.
  • Para os governos: Desenvolvimento de estruturas regulatórias que promovam a diversidade no mercado de IA e a sustentabilidade das redações, garantindo que o jornalismo continue a cumprir seu papel crucial na sociedade.

Segundo Anya Schilffer, embora a IA Generativa traga diversas oportunidades de inovação para o jornalismo, ela também apresenta ameaças existenciais às estruturas tradicionais da indústria e às narrativas culturais.

Em relação à alegação de que a regulamentação inibiria a evolução da IA generativa, Schiffrin argumenta que a inovação não deve ser um fim em si mesma. “Algumas inovações aumentaram a concentração de mercado e a exploração”, observa. 

Para ela, a inovação deve ser direcionada ao bem-estar social, e as regulamentações podem mitigar as ameaças que a IA representa para o jornalismo. 

 O relatório completo pode ser visto aqui.

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