Enquanto estudos ainda tentam medir o grau dos efeitos da inteligência artificial generativa no jornalismo, um dos efeitos menos esperados seja o retorno de jornalistas famosos. Isso porque já vemos algoritmos generativos utilizados para “trazer de volta” grandes nomes da imprensa.

Capitaneadas por grandes veículos do Reino Unido, ambas as iniciativas ocorreram nos últimos meses e são uma aposta no recurso tecnológico mais badalado do momento para manter imagens carismáticas no noticiário — seja ‘frilando’ por um dia, ou trabalhando recorrentemente em quadros especiais.

No entanto, também podem acrescentar mais lenha à fogueira do medo de que a inteligência artificial precarize ainda mais o trabalho de pessoas reais e de uma categoria profissional situada em crise.

Inteligência Artificial ‘ressuscita’ crítico de arte linha-dura

O primeiro jornalista a “voltar” a escrever foi o crítico de arte Brian Sewell. Em uma longa carreira também com escritor, apresentador de programas de rádio e colunista, ficou especialmente marcado por seus trinta de anos atuação no jornal regional diário The Evening Standard, até seu falecimento em 2015, em decorrência de um câncer, aos 84 anos. 

Brian Sewell, crítico de arte e colunista em entrevista ao Web of Stories
Brian Sewell, crítico de arte e colunista famoso por seu estilo rude e de palavras duras durante entrevista (Imagem: Reprodução/YouTube/CC)

Sewell era conhecido por sua língua viperina, com comentários sem meias palavras a todo o ecossistema artístico de Londres, atacando artistas, galerias, museus e até mesmo a cobertura do tema em outros jornais. O grau de efeito era tamanho que ele chegou a ser agredido fisicamente por seus opositores, que perdiam nas vendas em decorrência do seu trabalho.

Ao final de setembro deste ano, sua caneta voltou a tecer suas críticas durante um projeto especial do The Evening Standard, marcando o primeiro retorno de jornalistas através de inteligência artificial.

Na ocasião, Paul Kanarek, editor-chefe interino do Standard, confirmou ao The Guardian que o projeto seria um projeto de uma vez só, gerado por um clone feito por IA que imitaria o estilo do colunista. Este “Sewell 2.0” faria então uma crítica da exposição “Van Gogh: Poets and Lovers”, em curso na National Gallery.

O próprio objetivo desperta curiosidade, dado que Sewell era conhecido tanto por um estilo muito característico de texto quanto por ser ferino nas críticas. Dentre as suas mais famosas, estão as de que “Bansky deveria ter sido abortado” e que “qualquer idiota que consegue pôr tinta numa tela ou fazer esculturas de papelão hoje recebe laudas”.

A introdução da crítica pode ser vista abaixo, em tradução livre:

Van Gogh: Poets and Lovers na National Gallery é outro exercício insípido em hagiografia sentimental. Esta exibição, que alega explorar os relacionamentos ‘íntimos’ do artista através de uma série de retratos e estudos em florais, é na verdade uma indulgência superficial no romantismo — e do pior tipo, promiscuída às emoções do visitante casual enquanto ignora as profundidades da arte de Van Gogh. Parece que a National Gallery decidiu embalá-lo como o padroeiro do amor não correspondido, seu trabalho reduzido à cartões de lembranças aos emocionalmente entristecidos.”

IA traz apresentador icônico da BBC

Sewell não é o único caso recente de jornalistas de volta à labuta pelas novas ferramentas de inteligência artificial generativa. Michael Parkinson, famoso apresentador de televisão da BBC, é outro grande nome da imprensa londrina que retorna graças aos algoritmos.

Estrela da televisão, Parkinson iniciou sua carreira como repórter da BBC, tendo breves passagens por programas de TV até receber seu talk show homônimo, em 1971. O jornalista era conhecido por um estilo único de entrevista, relaxado e de voz calma, mas sem fugir de perguntas difíceis. 

Michael Parkinson em entrevista com Phillip Adams em seu talk show em 1979 (Imagem: Reprodução/YouTube)
Conhecido pelo seu estilo de entrevistas, Michael Parkinson em entrevista com Phillip Adams durante seu talk show em 1979 (Imagem: Reprodução/YouTube)

Aposentado em 2007, o apresentador faleceu em 2023, aos 88 anos, deixando como legado uma carreira de 50 anos em que entrevistou nomes como Muhammad Ali, Hellen Mirren e Paul McCartney ao vivo em TV aberta. 

Agora, o apresentador foi recriado em voz e “raciocínio” para uma série de podcasts, Virtually Parkinson — um trocadilho, que pode ser traduzido tanto quanto “virtualmente” quanto “quase” o Parkinson de verdade. 

Desenvolvido pela Deep Fusion Films para a produtora de conteúdos online Night Train Digital, a réplica contou com autorização da família de Parkinson, e promete oito episódios de entrevistas sem roteiro com celebridades A-list convidadas.

Os criadores afirmam que a IA de Parkinson não foi instruída no que dizer, apenas a declarar que o entrevistador em si é gerado artificialmente. O estilo, raciocínio e conhecimento do apresentador digital é baseado em um acervo de mais de 2 mil entrevistas, preservadas pelo filho do apresentador, Michael Parkinson Jr.

Virtually Parkinson não possui data específica para ir ao ar, prevista para publicação ainda este ano.

IAs de jornalistas levantam temores de trabalho precarizado 

O filho de Parkinson elogiou a iniciativa por prestar homenagem ao legado e trabalho de seu pai, muito embora o uso de inteligência artificial seja um ponto de contenção para jornalistas. “Sei que IA é um desenvolvimento controverso, mas eu senti que, se isso fosse ser feito, eu prefiro que fosse bem feito”, afirmou ele ao The Guardian.

No entanto, os anúncios foram acompanhados de incertezas sobre os efeitos dos produtos de IA baseados em jornalistas famosos e seus efeitos na imprensa.

Primeiro a publicar sobre a criação da IA de Brian Sewell, o site de notícias Deadline apontou que o projeto era acompanhado de uma crise institucional no The Evening Standard. Ao mesmo tempo em que “ressuscitava” o crítico de arte, o jornal também cortava 150 postos de trabalho — 70 deles no quadro editorial — e reduzia sua tiragem de diária para semanal, sob o nome London Standard.

Ao Press Gazette, o editor-chefe responsável por Sewell 2.0 afirma que o uso pontual era uma forma de “provocar discussões sobre IA e jornalismo”, visto que o estado atual da profissão ainda é incógnito após a introdução da tecnologia para o público amplo.

Em abril de 2024, a Associated Press (AP) publicou um estudo que aponta que IA generativa já submete o jornalismo a um “caminho sem volta”, no qual seu uso é amplo para a criação de conteúdo, porém sem diretrizes mais claras e treinamentos para um uso ético.

Enquanto estes efeitos em larga escala ainda não são medidos, a chegada das réplicas virtuais talvez tenha o efeito curioso e inesperado de contradizer as palavras de quem foram baseados, visto que, no obituário de Sewell, ele parecia em paz com a ideia de seu esquecimento:

“Logo deverei ser esquecido como escritor mas isso não importará enquanto houver outros preparados para travar chifres com o establishment, a debochar e fazer pouco caso disse de todos os seus trabalhos, de aguentar suas pancadas e sofrer um ocasional olho roxo.”