Londres – Na mesma semana em que repercutia globalmente o manifesto assinado por mais de 10 mil artistas e profissionais da indústria criativa, entre eles celebridades como Julianne Moore, reclamando do uso não licenciado de seu trabalho pelas empresas de inteligência artificial, o pagamento pelo conteúdo capturado para treinar os modelos de linguagem foi debatido na Trust Conference, realizada pela Thomson Reuters Foundation em Londres nos dias 21 e 22 de outubro. 

Um dos painéis reuniu a jornalista americana Kara Swisher, uma das vozes mais respeitadas e temidas do jornalismo de tecnologia; o CEO da Thomson Reuters, Steve Hasker, e a jornalista filipina Maria Ressa, Prêmio Nobel da Paz. Os três se mostraram alinhados à frase que encabeça o manifesto:

“O uso não licenciado de trabalhos criativos para treinamento de IA generativa é uma grande e injusta ameaça ao sustento das pessoas por trás desses trabalhos, e não deve ser permitido.”

A discussão ressaltou a importância de regulamentar as grandes empresas de tecnologia e suas ferramentas de IA, caminho defendido pelas principais organizações de jornalismo do mundo e por entidades como a Unesco. 

Unesco, a indústria criativa e a inteligência artificial

Em setembro de 2024, o órgão da ONU publicou um documento chamando a atenção para a urgência de mecanismos destinados a compensar os criadores de conteúdo e “não matar a galinha dos ovos de ouro”, já que são eles que fornecem informação confiável para alimentar as IAs. 

Com base em sua longa trajetória acompanhando os passos da indústria, Kara Swisher acusou as empresas de tecnologia digital de historicamente atuarem como “shoplifters” (ladrões de loja). 

“Eu sempre os vi como ladrões de informações. É isso que eles são. Eles são ‘ladrões de lojas’.

E continuarão a fazer isso com IA, com todo o resto, até que tenham sugado tudo. O seu motor é o lucro.”

Poucos no mundo têm autoridade para uma declaração tão contundente. Swisher, de 61 anos, cobre a internet desde 1994 e em 2023 chegou a ser retratada em um episódio de Os Simpsons. 

Kara Swisher, jornalista de tecnologia, retratada em Os Simpsons

 Autora de livros sobre o Vale do Silício e de um podcast que ocupa o quinto lugar em audiência no mundo, a editora-chefe da New York Magazine faz parte das listas de jornalistas de tecnologia mais influentes do planeta. 

Ela foi apresentada, antes de subir ao palco com os óculos escuros que são sua marca registrada, como “força da natureza”.

Kara Swisher, Maria Ressa e Steve Hasker debatendo sobre inteligência artificial na Trust Conference em Londres
Kara Swisher, Maria Ressa e Steve Hasker na Trust Conference (foto: MediaTalks)

Autora de livros sobre o Vale do Silício e de um podcast que ocupa o quinto lugar em audiência no mundo, a editora-chefe da New York Magazine faz parte das listas de jornalistas de tecnologia mais influentes do planeta. 

Potencial incrível e efeitos negativos da inteligência artificial

Swisher reconheceu o “potencial incrível” da IA. Mas chamou a atenção para os seus efeitos negativos, como o de qualquer invenção, que traz sempre os dois lados da moeda, dando o exemplo da eletricidade, que trouxe junto a eletrocussão. 

A jornalista enfatizou a necessidade de as empresas de IA pagarem o valor justo pelo conteúdo que utilizam e de serem responsabilizadas pelas consequências do que produzem, o que não acontece atualmente.

Swisher ironizou a classificação de “startup” aplicada ao ChatGPT, uma empresa avaliada, segundo ela, em US$ 150 bilhões.

“Que startup bonitinha, essa. Isso não é uma startup, mas é uma startup.”

Ao mesmo tempo, a jornalista deu um conselho a pessoas e empresas: que aproveitem a “carona gratuita” no investimento pesado que as companhias de inteligência artificial estão fazendo no desenvolvimento da tecnologia.

“Descubra o que a IA pode fazer pelo seu negócio. Descubra o que é bom e o que é ruim. Ganhe dinheiro com ela.

É uma carona gratuita para todos nós. Então, por que não aproveitar o desenvolvimento que estão fazendo?

Não se pode ter opinião [sobre a IA] se não a usar. E não se pode ter medo.”

Google e seu desrespeito à propriedade intelectual

Swisher é testemunha ocular da história das Big Techs, e parece já ter visto o filme da propriedade intelectual antes. 

Ela relatou uma visita ao Googleplex, sede do Google, em que foi recebida por Larry Page, então CEO da empresa. Diz que sua “ficha caiu” quando reparou em uma sala cheia de aparelhos de TV.

“No Google você se deparava com coisas estranhas o tempo todo. De repente poderia aparecer uma girafa em uma sala. Eles
faziam todos os tipos de experimentos.

Aí perguntei: ´o que é aquela sala com TVs?’ Page disse: ‘estamos captando a televisão’. Eu retruquei: ‘sério? O que você quer dizer com televisão? Toda a televisão?”

Ele disse: ‘sim, são canais diferentes. Estamos gravando tudo. E aplicando legendas ocultas à pesquisa. Vamos arquivar e usar’.

Então eu perguntei: ‘você detêm a propriedade intelectual?’ Ao que ele respondeu: ‘Não, por que eu preciso disso?’

Eu falei: ‘existe uma coisa chamada propriedade intelectual. Você não é dono disso, você está apenas roubando.’

O Google fez isso com livros, com entretenimento. E agora eles estão fazendo com a IA.”

Zuckerberg e seu descompromisso com a moderação 

Durante a palestra, Swisher falou sobre uma entrevista que fez com Mark Zuckerberg, CEO da Meta, na qual abordou o caso de Alex Jones, radialista considerado como o principal teórico da conspiração dos EUA.

“Perguntei: ‘quando você vai expulsá-lo do Facebook? Ele quebrou as regras da sua plataforma dezenas e dezenas de vezes.’

Mas ele mudou a conversa. E começou a falar sobre os negacionistas do Holocausto e disse que os deixava na plataforma por acreditar na liberdade de expressão e por achar que não queriam mentir.

Eu achei isso incrível, e respondi. ‘é claro que eles mentem. Esse é o trabalho terrível deles!‘

Ali eu percebi, e disse a Zuckerberg, que teríamos mais antissemitismo do que nunca, porque ele estava deixando na plataforma aquele lixo tóxico.

Dois anos depois, ele fez o que eu sugeri e retirou os negacionistas. Mas passaram-se dois anos desse antissemitismo fluindo.”

Tecnologia pode ser usada como arma ou ferramenta

Kara ressalta que tanto a mídia como a tecnologia podem ser usadas como arma ou ferramenta, dependendo do modo como são empregadas.

E para demonstrar isso fez um paralelo entre os adventos de tecnologias que criaram redes de informação, comparando a criação da prensa de Gutenberg com a Internet e o avanço atual da AI, lembrando de uma história que lhe foi contada por Yuval Harari, autor de vários bestsellers, como Sapiens e Homo Deus.

“Entrevistei Harari a respeito de seu último livro chamado Nexus, sobre lA e informação, que recomendo que todos leiam.

Ele me lembrou uma história do surgimento das redes de informação, para mostrar que  tudo o que estamos passando agora já aconteceu antes.vLogo após a criação da prensa de Gutenberg, o livro mais popular era chamado O Martelo das Bruxas.

Seu autor era o inquisidor alemão Heinrich Kramer. E ensinava como matar mulheres, essencialmente. Era um manual sobre bruxaria e como matar bruxas.

Nunca houvera essa caça às bruxas antes e, de repente, essa rede de informações foi criada, e centenas de milhares de mulheres morreram durante esse período.

Demorou 200 anos para que os bons usos da nova tecnologia fossem mais prevalentes do que os danos causados pelo mau uso dela por Kramer.

Mas ainda hoje, aquele livro está sendo usado pelos seguidores da teoria de conspiração QAnon.É o mesmo de sempre, o mesmo de sempre. Devemos ter uma visão de longo prazo dessas coisas.”

“Os reguladores da inteligência artificial é que são o problema”

Swisher observou, como diz em um de seus livros, que tudo o que pode ser digitalizado será digitalizado, e acha que ninguém pode construir o seu negócio a partir do negócio dos outros.

Mas sob a perspectiva de quem cobre a indústria desde o tempo em que as pessoas perguntavam o que era a internet, a jornalista é pragmática e coloca a responsabilidade por organizar toda essa confusão nos reguladores:

“Lembre-se, essas pessoas não têm seus interesses guiados pelo coração. Elas querem ganhar dinheiro. E neste ponto, não é culpa delas. São pessoas vorazes, capitalistas e orientadas pelos interesses dos acionistas. Elas vão fazer exatamente isso.

A questão é: o que vamos fazer, não para detê-las, mas para regulá-las da maneira adequada, assim como todo mundo está sujeito à regulamentação. Nossos reguladores é que são o problema neste momento.”

“A saída é manter a pressão”

Apesar da desigualdade de forças, Swisher considera que ainda dá para lutar:

“A verdade é que há uma concentração de poder nas mãos de um grupo muito pequeno de pessoas em uma parte da América, comparável ao dos ditadores históricos.

O governo dos Estados Unidos, tanto a banda Democrata quanto a Republicana, não quer regular esse grupo.E esse grupo nunca gostou da imprensa. Mas a imprensa não está aqui para ser apreciada. O que temos que fazer é continuar a criar, falar, fazer reportagens incríveis, continuar pressionando contra esse poder.”