Londres – A jornalista filipina Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2021, está convicta de que não é uma utopia parar de esperar “que as Big Techs “finalmente cumpram suas promessas de que se autorregularão” e desistir das redes sociais controladas pelas grandes plataformas de mídia digital.
Co-fundadora e editora do site de notícias Rappler, ela deposita esperanças na construção de ‘tecnologias deliberativas’ – um conjunto de ferramentas digitais capaz de permitir que os usuários conversem uns com os outros a partir de seus interesses, sem terem seus dados vendidos ou serem expostos a discurso de ódio e desinformação.
O aplicativo Rappler Communities, baseado nesse conceito, foi lançado em dezembro de 2023, construído no protocolo de código aberto Matrix. Ressa espera que até as eleições de 2025 nas Filipinas as ferramentas estejam em um nível que permita que”pessoas reais tenham conversas reais, sem manipulação para obtenção de lucro.
Maria Ressa e a batalha pela liberdade de imprensa
Exemplo de coragem por sua luta para resistir a uma avalanche de processos judiciais movidos durante o governo do ex-presidente Rodrigo Duterte, que chegaram a levá-la para a prisão, a co-fundadora e CEO do Rappler é uma das críticas mais eloquentes da influência das redes sociais na sociedade, sobretudo na política.
Conversando com o MediaTalks antes de subir ao palco da Trust Conference, em 22 de outubro, ela quis saber como estava a situação no Brasil após a mudança de governo.
Dois tipos de assédio contra jornalistas – digital e jurídico – são pontos comuns entre os dois países e não dependem necessariamente do Estado para florescer.
Ressa abriu sua participação no evento respondendo a uma pergunta provocativa feita pelo presidente da Fundação, o jornalista Antonio Zappulla: se achava que a democracia estava à beira de um precipício, como havia previsto há dois anos.
Ela respondeu que sim – mas com um toque de otimismo. Confira a seguir.
Democracia no precipício?
“A situação é ainda pior do que há dois anos. A corrupção entrou no ecossistema de informação, e o ódio que circula nas mídias sociais virou tudo de cabeça para baixo. Mas se reconhecemos que estamos na beira do precipício, é possível fazer alguma coisa para mudar isso.”
Eleições nos EUA e o ‘esgoto humano’ das redes
“Uma análise do Rappler sobre o noticiário na imprensa e nas redes sociais nos últimos três anos nos EUA mostrou resultados assustadores, muito piores do que o que vivemos nas Filipinas.
Seis em cada 10 americanos obtêm suas informações do ‘esgoto humano’ que é a mídia social. Como teremos um ecossistema de informações públicas que não seja motivado pela vigilância com fins lucrativos? Isso não está nos manipulando insidiosamente? Isso não está pegando ferramentas de publicidade e colocando-as nas mãos de poderes geopolíticos?
Imprensa mais atacada do que corporações
“Por que o setor de negócios é o mais confiável? Porque eles foram os menos atacados. Por que a confiança no jornalismo está se deteriorando? Fomos atacados imediatamente. Porque para se travar o engajamento cívico, pessoas duvidarem dos fatos e daquilo em que confiam.
Na verdade, o objetivo não é semear o caos, e sim fazer as pessoas não acreditarem em nada. É isso que as operações de desinformação praticam: criar desconfiança para que a sociedade não se mobilize. “
Investimento em jornalismo e a morte da democracia
“A questão não é se os jornalistas estão fazendo a coisa certa ou não. E não é um problema do jornalismo, apesar da mercantilização da imprensa e da utilização de jornalistas pelas Big Techs. O fato é que temos de competir num ambiente que recompensa o pior jornalismo pela distribuição mais ampla, que levou ao clickbait.
Em um sistema corrompido e enfraquecido, esperar que os jornalistas sozinhos resolvam o problema não é realista. E precisamos ganhar dinheiro, porque se não o fizermos, perdemos nossa independência. Mas como convencer os grandes investidores a investir em jornalismo? Porque se o jornalismo morre, a democracia morre.”
Mundo tecnofeudal
Em seu livro Techno Feudalism, o ex- ministro das finanças Janus Varafakis disse que não vivemos mais em um mundo capitalista, e sim em um mundo tecno-feudal, onde a tecnologia busca lucrar em ambas as extremidades. Este é agora o mundo virtual em que vivemos.
O Sistema de notícias ‘federado’
Maria Ressa apresentou na Trust Conference o conceito de um sistema de notícias federado, onde as principais organizações de notícias ancorarão suas comunidades e os usuários poderão seguir todas as plataformas de notícias e se conectar sem compartilhar dados.
Este sistema visa criar uma conexão global, semelhante à rede social Mastodon, mas com menos “atrito”, segundo ela.
“O aplicativo foi construído para se tornar um meio de distribuição global independente de notícias e pode abrir caminho para uma “realidade compartilhada”, diferente do que existe hoje.
O Rappler está trabalhando na implementação deste sistema com a ajuda da Google News Initiative, visando fazer parcerias com organizações em diferentes países como Indonésia, África do Sul, Brasil e Filipinas.
O conceito dessa tecnologia deliberativa é como construir uma conexão global. Quando Elon Musk comprou o X, muitas pessoas entraram no Mastodon, um sistema federado por servidor. Mas lá o atrito é muito alto.
Mas e se, globalmente, você pegasse organizações de notícias poderosas com suas comunidades integradas e as ancorasse sem precisar de um servidor DNS?
E se, globalmente, organizações de notícias poderosas, com suas comunidades integradas, fossem ancoradas sem precisar de um servidor DNS
Não será necessário fazer nada mais do que no Reino Unido seguir a BBC e a Reuters, ou o Rappler nas Filipinas.
Isso cria um aplicativo de bate-papo sob protocolo Matrix em que se duas pessoas seguem uma terceira, elas poderão conversar diretamente sem compartilhamento de seus dados, em um sistema federado.”
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