Buenos Aires – A decisão do presidente Javier Milei de retirar a delegação do país da COP29 dois dias após sua abertura e a um ano da COP30 em Belém foi mais noticiada no exterior do que na Argentina, onde as atenções da grande imprensa estão mais voltadas para assuntos econômicos locais.

A saída teve maior repercussão nos portais do que nas TV e rádios, que atingem uma parcela mais diversificada da população.

Mas foi desconcertante e pode ter efeito sobre a COP30 no Brasil.

Milei mandou delegação voltar no segundo dia da COP29

A pequena delegação, formada por apenas quatro técnicos, já tentava passar despercebida no encontro, segundo a enviada especial do jornal Clarín, Silvia Naishtat, quando Milei deu a ordem de abandono da conferência.

A decisão respingou nos representantes do setor privado e de ONGs que estavam em Baku.

A ONU suspendeu as credenciais de cerca de 50 argentinos logo depois da medida do presidente.

A informação foi publicada no La Nación, que definiu a decisão da ONU como “dura resposta ao governo Milei”. Mas a reportagem ressalva que a organização não teria tomado a iniciativa, mas sim atendido a uma “provável solicitação” da própria gestão Milei.

Depois da COP29, como fica a Argentina na COP30?

Por um motivo ou por outro, o fato é que a Argentina sai perdendo de Baku e agora a expectativa é sobre como o governo Milei se comportará em relação à COP30 no Brasil.

Os comentários do vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, chamando o presidente argentino de negacionista, foram reproduzidos nos principais portais de notícias.

Manuel Jaramillo, diretor-geral da Fundação Vida Silvestre Argentina, entidade associada ao Fundo Mundial para a Natureza (WWF), analisou em entrevista ao MediaTalks o impacto da saída “abrupta e desorganizada” da Argentina da COP29 no contexto de outros movimentos do país em relação à agenda climática.

“As únicas declarações, como a do chanceler Gerardo Werthein, foram de que a retirada seria para revisar a política climática do país.

As negociações continuaram sem a participação da Argentina. O país perdeu a oportunidade de defender seus interesses setoriais e nacionais.

Reputação argentina arranhada no mundo

Em sua versão em espanhol, a alemã DW noticiou a decisão de Javier Milei lembrando que a Argentina foi durante anos “uma das principais vozes da América Latina” nas conferências como a COP.

O espanhol El País ressaltou que Milei nega a mudança do clima e relembrou uma de suas frases em um debate da campanha eleitoral no ano passado:

“Todas as políticas que culpam o ser humano pela mudança climática são falsas. O que se busca é arrecadar fundos para financiar socialistas que não fazem nada.”

As palavras do então candidato sinalizaram a plataforma negacionista de Milei em relação ao meio ambiente, com atos como a eliminação da pasta dedicada à questão, hoje dividida entre dois ministérios.

Futuro presidente dos EUA, presidente da Argentina e o clima a um ano da COP30 

Com a eleição de Donald Trump, Manuel Jaramillo entende que há ainda mais motivos para preocupação sobre os próximos passos da Argentina.

Milei é admirador de Trump e fez questão de ser um dos primeiros líderes estrangeiros a parabenizá-lo pessoalmente.

Eles se abraçaram na mansão de Trump em Mar-a-Lago, na Flórida, na semana em que a Argentina deixou a COP29.

Como Trump abandonou o Acordo de Paris quando foi presidente pela primeira vez, não há expectativas de que mude a postura a partir do ano que vem, concordam analistas. Milei está seguindo a mesma cartilha.

Argentinos preocupados, mas sem ação pelo clima

Apesar dos caminhos escolhidos por Milei que ficaram mais evidentes na COP29, há sinais positivos na Argentina. Em novembro, um produtor pecuário foi condenado por atropelar e matar pinguins na Patagônia, em 2021. A imprensa local batizou o caso de “ecocrime”.

Mas pesquisas de opinião mostram que a maior preocupação dos cidadãos é com o aumento da pobreza. Até recentemente eram a inflação e a corrupção.

O meio ambiente não costuma aparecer entre as principais angústias dos argentinos, apesar dos três anos de seca histórica que o país encarou até o fim de 2023, quando rios desapareceram, animais morreram, lavouras torraram. A emblemática geleira Perito Moreno, na Patagônia, vem perdendo grande volume de gelo a cada ano.

Um relatório do PNUD Argentina, de maio de 2024, intitulado “Ação Ambiental: crenças, expectativas e participação cidadã”, revelou que “a maioria dos argentinos (67%) reconhece as consequências da mudança climática”.

Paradoxalmente, apenas 17% dos argentinos declaram “realizar ações ambientais” com frequência.

Veganismo na Argentina: é possível?

Nesse ambiente e em um país com alto consumo de carne, há espaço para atitudes individuais como a adesão ao veganismo ou a decisão de trocar a carne bovina por outras opções?

Um levantamento da Bolsa de Comércio de Rosario, voltada para o setor agropecuário, apontou que este ano o país deve registrar o “pior índice de consumo de carne bovina em 110 anos”.

Para surpresa de muitos, o resultado não estaria somente ligado à crise econômica, pois os preços têm subido menos do que a inflação e a carne bovina foi a que teve a maior queda.

O diretor da União Vegana Argentina, Manuel Alfredo Martí, está convicto de que os argentinos estão mudando seus hábitos alimentares devido à maior conscientização.

Martí tem 68 anos, é vegano há 50. Sua missão não é fácil: convencer argentinos a não comerem carne, informando sobre as vantagens do veganismo.

A Fundación UVA (Unión Vegana Argentina) tem mais de 46 mil seguidores no Instagram e 78 mil no Facebook.

Diretor da revista VEGAN e coordenador da campanha ‘lunes sem carne’ (segunda-feira sem carne) na Argentina, Martí alerta:

“O veganismo é o instrumento mais importante que a humanidade tem hoje para tentar conter o aumento da temperatura do planeta, melhorar a saúde das pessoas e ajudar os animais.

Uma pesquisa encomendada pela Fundação, realizada pela empresa Kantar-Insights Division, mostrou que 9% dos argentinos eram veganos ou vegetarianos em 2019.

O índice cresceu para 12% em 2020. Os ‘flexitarianos” – os que comem carne de vez em quando e não com a frequência diária de antes – também eram cerca de 12% em 2020.

Martí está entre os que lamentam o “negacionismo” em relação às mudanças climáticas e a decisão do presidente Javier Milei de retirar a delegação argentina da COP29.

“Há vários cientistas que não são capitalistas e nem comunistas. A Argentina mandou pessoas para Baku e as retirou da conferência em um momento em que cresce a preocupação mundial com o clima”, afirmou.


Este artigo faz parte da edição especial MediaTalks COP29. Leia aqui a revista completa.