A série da Netflix Vinagre de Maçã conta a história da influenciadora de bem-estar Belle Gibson, que construiu uma legião de seguidores nas redes sociais ao documentar sua jornada contra o câncer online.
Mas em 2015, Gibson foi exposta como uma fraude. Ela nunca teve câncer e mentiu sobre doar fundos para instituições de caridade e crianças doentes. A série documenta a ascensão de Gibson à fama e sua queda, retratando alguns dos fatores psicológicos que influenciaram a farsa.
Mas esse escândalo também ilustra uma história maior sobre as condições que permitem que pessoas que mentem sobre o câncer como Gibson ganhem credibilidade e influência online.
A década de 2000 foi caracterizada pela “revolução dos blogs” — uma mudança na forma como as pessoas passaram a produzir e consumir informações.
Eles permitiram que criadores de conteúdo compartilhassem suas vidas e experiências publicamente e se comunicassem diretamente com o público.
Comunidades se formaram em torno de interesses comuns que vão de cuidados com a saúde a como lidar com um coração partido.
O caso Vinagre de Maçã
Belle Gibson capitalizou essa tendência, criando um blog chamado The Whole Pantry, no qual documentou sua suposta jornada lutando contra uma forma rara de câncer terminal cerebral.
Ela afirmou em seu blog ter decidido rejeitar tratamentos convencionais de câncer.
Em vez disso de fazer um tratamento, ela disse que se sentia “empoderada” para se curar naturalmente por meio da nutrição, determinação e amor – assim como medicina alternativa, incluindo tratamentos de ayurveda, terapia craniossacral, oxigenoterapia e hidroterapia do cólon.
O blog virou um aplicativo em 2013 e um livro em 2014 – com a história de Gibson sendo legitimada por uma editora e marcas respeitáveis, e depois alimentada por sua presença nas redes sociais.
Influência
A principal plataforma de comunicação de Gibson era o Instagram. Ela usou o aplicativo de compartilhamento de fotos e vídeos para construir uma base de seguidores e interagir com eles por meio de citações inspiradoras, anedotas pessoais e fotografias evocativas.
Os influenciadores de estilo de vida e bem-estar geralmente ganham confiança e intimidade ao se apresentarem como autênticos, acessíveis — e autônomos de interesses estatais e corporativos.
Uma citação do livro de Gibson, também chamado The Whole Pantry, resume a maneira como ela executou essa estratégia para atrair seguidores online. Ela escreveu:
“Muitas pessoas se editam demais. Não há honestidade suficiente por aí. É humano se sentir doente, fazer perguntas, buscar respostas…
Nunca se filtre de uma forma que não seja como seu coração, sua mensagem e seu eu mais verdadeiro”.
Essa persona permitiu que Gibson não apenas alcançasse fama online, mas também estabelecesse um relacionamento “parassocial” com seus seguidores ao se distanciar da linguagem dos médicos, parecendo acessível e sem filtros.
A mídia há muito tempo é reconhecida como facilitadora de relacionamentos parassociais: vínculos emocionais e imaginários que, apesar de parecerem reais, tendem a ser unidimensionais e unilaterais.
Os relacionamentos parassociais originalmente eram com figuras da grande mídia, como âncoras de notícias, apresentadores de rádio e estrelas de cinema e do pop.
Hoje, os criadores de conteúdo nas redes sociais são os principais influenciadores. Embora esses relacionamentos sejam tipicamente unilaterais, eles ainda podem parecer íntimos e reais.
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O papel da indústria do bem-estar
Após o escândalo, as pessoas procuraram a quem culpar. Dedos foram apontados para a imprensa por glamourizar Gibson, bem como para a editora e outras empresas que falharam em checar a veracidade das afirmações dela.
As críticas também foram direcionadas à indústria do bem-estar por espalhar desinformação e pseudociência.
Há uma suposição de que o bem-estar é principalmente uma busca feminina – e a série da Netflix acompanha várias influenciadoras de bem-estar que construíram marcas em torno de suas doenças e problemas de saúde.
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Na verdade, as dimensões de gênero na área de bem-estar são mais complicadas.
Os fundadores originais do movimento de bem-estar eram homens. Embora muitos lutassem para mercantilizar o bem-estar, cada vez mais eles exploravam um mercado de mulheres, muitas das quais se sentiam justificadamente ignoradas pelos profissionais de saúde.
É irônico que a marca de bem-estar de Gibson tenha o nome do Instagram “healing_belle” [healing significa cura em inglês]. Parte do sucesso da indústria do bem-estar hoje é derivado de promessas de curas milagrosas e remédios para várias formas de doenças.
Muitos influenciadores de bem-estar construíram marcas de sucesso comercializando a saúde e o bem-estar geral.
Isso está muito longe das origens do movimento e da concepção mais positiva de saúde que eles buscavam estabelecer — que visava operar em conjunto com a medicina, em vez de contra ela.
Gibson alcançou a fama em um ambiente de baixa confiança institucional, onde a experiência vivida por ela era mais valorizada por seus seguidores do que a expertise das instituições.
Semelhante a muitos influenciadores de saúde alternativa, sua propagada desconfiança da medicina convencional resultou em alegações controversas sobre vacinação e os benefícios da terapia Gerson — um regime que afirma curar o câncer por meio de uma dieta especial, suplementos e enemas — e leite cru.
Os supostos efeitos colaterais negativos da quimioterapia e da radioterapia foram documentados em seu livro, no qual Gibson conseguiu apresentar seu estilo de vida e experiência vividos como um caminho alternativo e esperançoso para a cura.
Casos de influenciadores contando mentiras aumentou
Depois que ela foi condenada por conduta enganosa em 2017 e teve que pagar ao Tribunal Federal da Austrália uma multa de AUS$ 410.000 (£ 206.000), era de se esperar uma diminuição de pessoas mentindo sobre o câncer, dada a publicidade global que o escândalo atraiu.
Em vez disso, outros casos de perfis de criadores de conteúdo relevantes vendendo informações falsas sobre câncer em plataformas de vídeos curtos surgiram em uma taxa alarmante — muitas vezes usando as redes sociais para monetizar falsas curas milagrosas, de sementes de damasco a chá de graviola.
Plataformas de vídeos curtos como TikTok, reels do Instagram e shorts do YouTube mudaram a dinâmica da fama.
Algoritmos são essenciais para a experiência do usuário nesses aplicativos, permitindo que criadores de conteúdo relativamente desconhecidos ganhem visibilidade e atenção online.
Enquanto Gibson passou anos cultivando seguidores online, hoje um criador de conteúdo com poucos seguidores pode enviar um vídeo que gere engajamento, e assim obtém milhões de visualizações.
As tecnologias mudaram, mas há uma indústria de criadores de conteúdo lucrando com conselhos enganosos e prejudiciais.
A prevalência de desinformação sobre câncer online destaca que o problema é muito mais profundo do que o caso de Gibson, como relatado em Vinagre de Maçã.
Sobre a autora
Stephanie Alice Baker leciona Sociologia na City St George’s, University of London. Ela ocupou cargos de pesquisa e ensino no Indian Institute of Technology – Bombay, na University of Sydney, na University of Western Sydney, Goldsmiths e na University of Greenwich, Reino Unido. Ela é pesquisadora na área de comunicação online, particularmente em torno de questões relativas à saúde e bem-estar.
Este artigo foi originalmente publicado no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.
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