Londres – Enquanto o mundo observa os rumos da guerra na Ucrânia – com Vladimir Putin ausente das conversas de paz na Turquia, um novo documentário lançado pelo Kremlin oferece uma rara oportunidade de compreender como o presidente da Rússia se vê — e como ele deseja ser visto.
Com mais de quatro horas de duração divididos em capítulos, o novo documentário sobre Putin vai muito além de uma retrospectiva política: é uma peça de propaganda sofisticada, cuidadosamente construída para eternizar uma narrativa épica em torno do líder russo.
A ausência do presidente na Turquia não permitirá que se saiba exatamente o que ele pensa, mas o verdadeiro posicionamento do presidente pode estar mais bem expresso nesse filme do que em qualquer cúpula internacional.
Novo documentário sobre Putin é ‘um épico sobre um homem só’
O professor e pesquisador Mark Galeotti, especialista em política e segurança russas, assistiu ao documentário e publicou uma análise aprofundada no portal The Conversation, revelando os bastidores simbólicos e ideológicos da obra
O documentário, intitulado simplesmente Putin, foi veiculado pelas principais mídias estatais russas, está disponível no YouTube e inclui longas entrevistas com o presidente, intercaladas com cenas cuidadosamente selecionadas para reforçar uma narrativa central: a de que Putin é o último bastião da estabilidade, da moralidade e da identidade russa.
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Para Mark Galeotti, o documentário não tem a intenção de contar uma história objetiva, mas de construir um mito político, onde a figura de Putin se confunde com a da própria nação.
“O filme é um espelho polido. Ele não mostra quem Putin é, mas como ele quer ser lembrado”, afirma o autor.
Putin em cena: um retrato de força e destino
O novo documentário sobre Putin apresenta sua trajetória desde a infância em Leningrado até os anos turbulentos após a queda da União Soviética.
Cada episódio de sua vida é interpretado como parte de um grande desígnio histórico.
Ele é mostrado como alguém resiliente, estrategista e protetor dos valores tradicionais russos. Não há espaço para dúvidas ou falhas — o tom é de grandeza e inevitabilidade.
Essa abordagem, segundo Galeotti, tem um claro propósito: consolidar uma figura de autoridade incontestável, quase messiânica. Putin aparece não como um político entre outros, mas como o único capaz de conduzir a Rússia em tempos de crise.
“É um culto à personalidade, mas cuidadosamente disfarçado de reflexão histórica”, observa Galeotti.
O inimigo como elemento unificador
Outro ponto central do documentário é a construção de um inimigo claro e constante: o Ocidente. A OTAN, os Estados Unidos e até os valores liberais são apresentados como forças corrosivas que ameaçam a alma da Rússia.
A guerra na Ucrânia, nesse contexto, é retratada como uma resposta legítima — quase inevitável — a essa pressão externa.
Para Putin, segundo sua própria fala no filme, trata-se de uma “luta pela sobrevivência cultural e espiritual do povo russo”. Assim, qualquer diálogo ou concessão não seria apenas uma fraqueza política, mas uma traição a uma missão civilizacional.
“Essa lógica de cerco permite justificar a repressão interna, a censura e a manutenção do poder por tempo indefinido”, analisa Galeotti.
Um olhar para o futuro — e para o legado de Putin
O tom do documentário é claramente projetado para o futuro.
A obra não apenas revisita o passado, mas sugere um legado duradouro. Putin fala com a tranquilidade de quem acredita estar escrevendo os capítulos finais de uma narrativa histórica grandiosa — e de quem se vê como indispensável.
Essa dimensão simbólica faz do documentário sobre Putin não apenas um instrumento de comunicação, mas um artefato político. Ele não serve apenas para o presente, mas para moldar a memória e influenciar gerações futuras.
É, como destaca Galeotti, “uma tentativa deliberada de controle da narrativa histórica”.
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Por que assistir — ou por que não assistir ao documentário
Assistir às quatro horas de produção pode parecer um desafio, especialmente para quem procura fatos objetivos ou análises críticas.
No entanto, como ressalta Galeotti, compreender essa peça de propaganda é essencial para entender os rumos da política russa — e por que Putin continua a gozar de apoio interno mesmo diante de sanções, isolamento diplomático e uma guerra prolongada.
“O documentário não revela apenas o que Putin pensa, mas o que ele quer que você pense que ele pensa”, afirma o especialista.
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