A América Latina atravessa uma de suas piores crises de direitos humanos em décadas. O espaço cívico encolhe rapidamente, com vigilância em massa, prisões arbitrárias, repressão política, desaparecimentos forçados e impunidade para a violência estatal.
O relatório de 2025 sobre o estado dos direitos humanos no mundo, publicado pela Anistia Internacional, expõe a gravidade do cenário.
Sete países – Haiti, Nicarágua, Venezuela, México, Colômbia, Cuba e El Salvador – estão no epicentro dessa onda autoritária.
A volta de Donald Trump à Casa Branca, em janeiro, agravou a situação.
Em um relatório separado divulgado na mesma semana, a Anistia argumenta que a retórica nacionalista e os retrocessos políticos do ex-presidente americano fortaleceram líderes autoritários, comprometendo a responsabilização internacional e acelerando violações de direitos em todo o hemisfério.
Sete países no centro da repressão aos direitos humanos em uma América Latina em crise
1. Haiti
Em nenhum outro lugar o colapso dos direitos humanos é tão visível quanto no Haiti.
Até o fim de 2024, mais de 700 mil pessoas — metade delas crianças — foram deslocadas internamente devido à escalada da violência de gangues e à falência do Estado.
Organizações criminosas realizaram assassinatos, violência sexual e ataques a hospitais e escolas. Um massacre ocorrido em dezembro de 2024 em Cité Soleil, bairro populoso de Porto Príncipe, deixou ao menos 207 mortos, executados pela gangue Wharf Jérémie.
O sistema judiciário praticamente parou de funcionar. Ao mesmo tempo, deportações de haitianos pelos EUA e pela vizinha República Dominicana aumentaram. Segundo a Anistia, quase 200 mil pessoas foram devolvidas sem o devido processo legal só em 2024. A política de Trump de repressão migratória acelerou essas remoções.
2. Nicarágua
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, aperfeiçoou a repressão a ponto de torná-la uma máquina estatal eficiente.
Desde 2018, mais de 5 mil organizações da sociedade civil, universidades privadas e meios de comunicação foram fechados — sendo 1.500 apenas entre janeiro e setembro de 2024.
Mais de 400 críticos perderam a nacionalidade desde 2023. Jornalistas foram desaparecidos ou presos, e o status legal de centenas de grupos evangélicos foi revogado.
A dissidência foi criminalizada a ponto de setores inteiros da sociedade civil desaparecerem. Comunidades indígenas também sofreram deslocamentos e ataques armados de milícias pró-governo, sem reação internacional significativa.
3. Venezuela
A repressão continua intensa na Venezuela. Após uma eleição presidencial contestada em julho de 2024, vencida por Nicolás Maduro, houve detenção arbitrária e tortura de manifestantes — inclusive crianças.
Jornalistas independentes foram presos, e ONGs ameaçadas de fechamento.
Milhares de venezuelanos deixaram o país. Em setembro de 2024, mais de 20 mil migraram pela selva do Darién — 70% a mais que no mês anterior. Uma pesquisa feita após a eleição indicou que 43% dos que ficaram cogitavam emigrar. Já são mais de 7,8 milhões de venezuelanos vivendo fora do país.
Em 2023, o Tribunal Penal Internacional retomou a investigação contra o regime por crimes contra a humanidade. Mas o governo continua a obstruir a Justiça.
Com os EUA fora de acordos multilaterais sob Trump, os esforços por democracia enfrentam mais obstáculos.
4. México
A segurança pública no México está cada vez mais militarizada.
Em setembro de 2024, dias antes do fim do governo López Obrador, uma emenda constitucional transferiu o controle da Guarda Nacional para os militares, ampliando os abusos. Nove defensores de direitos humanos e quatro jornalistas foram assassinados em 2024.
O governo também enfraqueceu a liberdade de imprensa e falhou em proteger solicitantes de refúgio.
As deportações dos EUA aumentaram com o retorno de Trump, e os repatriados correm risco de violência e exploração por cartéis.
5. Colômbia
A Colômbia sofreu a mais longa insurgência da América Latina, que durou mais de 50 anos. Apesar das estruturas institucionais do país, a paz ainda é instável. Em 2024, mais de 195.000 pessoas foram confinadas à força por grupos armados, e minas terrestres continuam ameaçando mais de 600.000 civis.
Houve aumento no recrutamento infantil, na violência sexual e nos assassinatos de ex-combatentes das Farc. O progresso na implementação do acordo de paz de 2016 é lento.
Investigações sobre execuções extrajudiciais cometidas por militares enfrentam cortes orçamentários e pressões políticas. A retirada do apoio dos EUA aos mecanismos de justiça transicional enfraqueceu ainda mais os esforços de reconciliação.
6. Cuba
O governo cubano continua reprimindo dissidentes com prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados e censura.
Mais de 100 pessoas foram presas por protestar em 2024, muitas forçadas a se incriminar em vídeos. Mídia independente e ativistas sofrem vigilância e assédio constantes.
Com a crise econômica e novas sanções impostas pelos EUA sob Trump, mais de 18% da população fugiu da ilha em dois anos. As migrações resultam em separações familiares e travessias perigosas.
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7. El Salvador
A política de prisões em massa do presidente Nayib Bukele segue chamando atenção mundial. Quase 84 mil pessoas foram presas desde 2022 sob estado de emergência que suspende direitos básicos.
Detenções arbitrárias, vigilância e humilhações públicas tornaram-se rotineiras.
A admiração declarada de Trump pelo estilo “mão dura” de Bukele tem conferido legitimidade internacional ao modelo salvadorenho.
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A normalização da violência estatal
A volta de Trump ao poder contribuiu para retrocessos em toda a região. Sua saída de acordos sobre direitos humanos e meio ambiente encorajou governos autoritários a reprimir dissidentes e explorar recursos sem temer retaliações.
Migrantes latino-americanos nos EUA enfrentam nova onda de deportações em massa. A retórica que os associa ao crime reforçou a xenofobia, autorizando batidas e políticas mais restritivas.
Cidades-santuário como Chicago viraram alvo, e proteções legais foram desmanteladas.
A trajetória atual da América Latina aponta para a normalização da repressão estatal. Embora haja resistência local, principalmente de ativistas de base, a solidariedade internacional enfraqueceu diante das mudanças geopolíticas.
A região corre o risco de consolidar uma nova era de autoritarismo resiliente — na qual defender direitos humanos é não apenas arriscado, mas, para muitos, visto como inútil.
Este artigo foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.
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