Londres – Esta semana está sendo para a BBC uma das mais difíceis de seus mais de 100 anos de história, aprofundando uma crise que ameaça seu futuro — ou ao menos sua existência no formato atual – devido a escândalos relacionados ao programa MasterChef e a um documentário sobre Gaza.
Dois relatórios devastadores para a reputação da emissora vieram a público simultaneamente na segunda-feira (14), escancarando fragilidades editoriais e institucionais da rede pública britânica.
Em um deles, a BBC admitiu ter cometido uma grave falha ao exibir um programa sobre a guerra narrado por um adolescente que é filho de um integrante do Hamas.
No outro, um relatório independente confirmou denúncias de comportamento abusivo do apresentador Gregg Wallace nos bastidores do MasterChef, levando a BBC a anunciar que não voltará a trabalhar com ele.
Como se não bastasse, no dia seguinte a emissora voltou às manchetes com outra polêmica envolvendo o programa: o também apresentador John Torode foi acusado de ter usado linguagem racista em uma conversa ocorrida há mais de cinco anos, em circunstâncias pouco explicadas.
Um episódio que provavelmente passaria despercebido, não fosse a ligação com a BBC, ilustrando a extensão de sua crise de imagem. Mas ele acabou demitido pela produtora responsável pelo MasterChef.
Relatório anual da BBC: fuga de pagantes
Os reflexos dessa crise aparecem no Relatório Anual da BBC, publicado no mesmo dia, que também veio cheio de más notícias.
O documento informa que 300 mil residências deixaram de pagar a taxa em um ano. O baque financeiro, de £50 milhões, parece grande. Mas é pequeno perto do baque institucional.
Apesar de distintos, os casos de Gaza e do MasterChef expõem uma mesma fragilidade: a dificuldade da BBC em equilibrar seu papel como emissora pública financiada por contribuintes com a obrigação de manter credibilidade editorial e tolerância zero a abusos praticados por estrelas do elenco.
Há vários casos que resultaram em demissões. Antes do caso de Gregg Wallace, a rede teve que lidar com a condenação de uma das maiores figuras de seu jornalismo, o apresentador Huw Edwards, por má conduta sexual envolvendo menores de idade.
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As pressões sobre sua imparcialidade, independência editorial e padrões de conduta se intensificaram nos últimos anos, alimentadas por críticas de diferentes setores políticos e da sociedade civil.
Desde o governo de Boris Johnson, o modelo de financiamento da BBC — baseado em uma taxa de licença obrigatória, inclusive para quem assiste pela internet — tem sido alvo de questionamentos, com ameaças de reformulação que poderiam comprometer sua sobrevivência.
A emissora tem buscado alternativas para se reposicionar, como cortes de pessoal, paywall nos EUA, adoção da IA, terceirização de produção por meio de acordos com big thechs e investimentos em streaming.
Mas casos como os mais recentes só agravam o desgaste da marca, em um cenário cada vez mais adverso – com os escândalos sendo usados com munição para os críticos.
Documentário sobre Gaza e vínculo com o Hamas
O documentário Gaza: How to Survive a Warzone, foi exibido pela BBC em fevereiro e logo retirado do ar. Mas isso não colocou fim à crise.
O programa é narrado por Abdullah al-Yazouri, de 13 anos. O jovem é filho de Ayman Alyazouri, alto funcionário do Hamas — informação conhecida pela produtora independente Hoyo Films, mas não revelada à BBC.
Nesta segunda-feira, após a conclusão da investigação, emissora admitiu falha editorial grave por não ter identificado o vínculo antes da exibição.
O Ofcom, órgão regulador de comunicações no Reino Unido, abriu uma investigação sobre possível engano ao público.
Em resposta, a BBC prometeu revisar seus processos internos e anunciou a criação de um novo cargo de supervisão para documentários jornalísticos.
Mais crises associadas à guerra em Gaza
A crise foi agravada por outras decisões recentes da emissora. Já abalada pelo caso do programa exibido em fevereiro, a rede preferiu não correr riscos e deixou de veicular outro documentário, Doctors Under Attack, devido a preocupações com imparcialidade.
Em reação, mais de 600 figuras públicas — incluindo celebridades como Susan Sarandon, Mike Leigh e Gary Lineker — exigiram que a rede voltasse atrás, alegando que isso representava uma forma de supressão política da voz palestina.
O filme acabou sendo exibido por outra rede, o Channel 4.
E houve mais. Em uma transmissão ao vivo do festival de Glastonbury, no dia 28 de junho, o vocalista da dupla Bob Vylan protagonizou uma grande polêmica ao liderar um coro de “Free Palestine” e “Death to the IDF” (morte ao IDF, a força militar de Israel).
A BBC transmitiu ao vivo, mas depois expressou arrependimento por não ter interrompido o streaming. As declarações desencadearam fortes reações políticas e institucionais: o primeiro‑ministro britânico Keir Starmer e a Secretária da Cultura Lisa Nandy condenaram o episódio.
Já Lineker, ex-capitão da seleção inglesa de futebol e uma das personalidades mais admiradas do país, foi igualmente protagonista de outro problema.
Uma postagem antissemita em suas redes sociais fez com que antecipasse sua saída da rede, deixando a bancada do principal programa esportivo da BBC, o Match of The Day.
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Diante da sequência de casos, parlamentares têm pedido o fim da taxa de licença obrigatória paga pelos britânicos.
E organizações como a Campaign Against Antisemitism pressionam pela demissão do diretor-geral, Tim Davie, que tenta a todo custo se manter no cargo.
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Gregg Wallace e os abusos no MasterChef
Também na segunda-feira (14), um relatório independente encomendado pela produtora Banijay revelou 83 denúncias contra Gregg Wallace, apresentador do programa MasterChef.
Ele tinha sido afastado em 2024 quando os problemas começaram a vir à tona. Entre elas, 45 foram confirmadas, com casos documentados entre 2005 e 2024.
De acordo com o relatório, Wallace fez comentários sexualmente explícitos, piadas e insinuações inapropriadas, declarações racistas ou culturalmente insensíveis, praticou bullying, chegou apareceu nu no ambiente de trabalho mais de uma vez e protagonizou ao menos um caso de contato físico indesejado.
Wallace alegou ter sido exonerado das acusações mais graves e revelou ter sido diagnosticado com autismo, mas afirmou que não usaria isso como desculpa.
A BBC reconheceu que falhou em agir diante de denúncias anteriores e declarou que não pretende trabalhar com o apresentador novamente.
No embalo, outro apresentador do programa, Jonh Torode, também perdeu o posto devido a um registro de uso de linguagem racista revelado no relatório que apurou a conduta de Wallace.
A Banijay admitiu que seus protocolos internos foram insuficientes para lidar com os abusos.
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Repercussões para a liderança da BBC
A condução das crises reforçou críticas ao diretor-geral da BBC, Tim Davie, acusado por setores da imprensa de agir mais como estrategista de imagem do que como jornalista.
Sem precedentes em sua simultaneidade e gravidade, os dois episódios pressionam a emissora a reforçar padrões de conduta, revisar processos editoriais e enfrentar o desafio de manter sua credibilidade como rede pública diante de um público cada vez mais exigente.
E em um ambiente político polarizado em que ela é atacada por todos os lados – seja por agir ou por não agir.
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