Na esteira do debate provocado pela série Adolescence, um novo estudo feito pela Universidade do Sul da Califórnia (USC) revelou que filmes e séries tendem a isentar as Big Techs de responsabilidade pelos problemas causados pelas redes sociais, direcionando a culpa pelos impactos negativos aos próprios usuários

O relatório abrange três grandes mercados culturais – EUA, Reino Unido e França –  combinando análise de 76 episódios de produções que abordam danos das redes e entrevistas com espectadores sobre suas percepções e interesse no tema. 

Quase a metade dos capítulos analisados (37) enquadrou os problemas como resultado de falhas individuais ou dos pais, enquanto apenas seis apontaram empresas de redes sociais, reais ou fictícias, como parcialmente responsáveis por causar danos. 

Lacuna entre percepção públicas e retrato das Big Techs em filmes e séries

Intitulado “Off the Hook: Entertainment and News Coverage Rarely Blame Tech Corporations for Social Media Harms” (Isentas de responsabilidade: como o Entretenimento e a mídia raramente culpa corporações de tecnologia pelos danos das redes sociais”) o estudo feito pela Escola de Comunicação da USC com apoio da ONG de mídia Luminate revelou um claro apetite do público pelo tema.

Mais de 80% dos entrevistados expressaram “algum” interesse em assistir a séries ou filmes sobre os malefícios potenciais das redes sociais em diferentes gêneros, como comédia (22%), thriller (20%), ação-aventura (19%) ou drama jurídico/policial (19%). 

O problema, de acordo com os pesquisadores, é lacuna significativa entre a percepção pública dos problemas e a forma como a ficção os aborda, focando frequentemente na culpa individual em vez de discutir causas sistêmicas. 

Como foi feito o estudo: análise de filmes e séries de 3 países

Para chegar aos resultados, a equipe reuniu transcrições de fontes publicamente disponíveis, buscando 40 palavras-chave relacionadas à tecnologia entre 2015 e 2024.

O estudo analisou uma amostra final de filmes e séries de TV composta por 61 produções dos EUA, oito da França e sete do Reino Unido, países com grande influência cultural global e situações regulatórias diferentes. 

Quase metade (43%, ou 33 episódios) retratou as redes sociais como neutras ou positivas no geral. O trabalho destaca três exemplos: 

  • The Paynes (EUA) mostrou o uso de redes sociais para promover pequenos negócios.
  • The Bold Type (EUA) ilustrou o uso para fomentar a diversidade em uma empresa editorial.
  • Death in Paradise (Reino Unido) apresentou as redes sociais como uma ferramenta útil para a aplicação da lei.

Em 57% do conteúdo analisado (43 episódios)  as redes sociais foram representadas como predominantemente negativas ou associadas a problemas. 

Os dramas criminais/jurídicos, embora representassem apenas 32% da amostra, foram responsáveis por quase metade (44%) das representações negativas. 

Os problemas mais comumente retratados incluíam assédio online, desinformação, humilhação pública e a busca tóxica pela fama.

A descoberta mais contundente, no entanto, é sobre a atribuição de culpa por esses problemas, focada nos próprios usuários, a maioria jovens, ou nos pais que não exerceram controle adequado. 

Um exemplo citado é um episódio de Magnum PI (EUA), que atribui o dano à “idiotice adolescente padrão”.

Entre os programas que mostraram as redes como culpadas destacado pelos pesquisadores está  um episódio de The Good Fight (EUA), que mostra uma empresa de redes sociais manipulando seu algoritmo para ocultar certos tipos de discurso político inconveniente. 

Soluções simplistas e focadas nos indivíduos

Quando se trata de soluções, o panorama apresentado no estudo da USC é igualmente preocupante. 

Vinte e sete episódios não sugeriram nenhuma solução concreta para problemas relacionados a redes sociais, tendendo a enquadrar os danos como inevitáveis ou insolúveis.

O trabalho comenta um episódio de Instinct (EUA) que afirma categoricamente:

“Você não pode controlar as redes sociais”.

Dezesseis episódios sugeriram soluções centradas no indivíduo.

Por exemplo, Détox (França) mostra personagens fazendo um “detox de telefone” para reduzir os efeitos psicológicos nocivos do uso excessivo, enquanto a série CSI: Cyber sugere que os pais devem educar seus filhos para “tomarem melhores decisões” ao usar redes sociais.

Essas descobertas estão em desacordo com as percepções da audiência de que o entretenimento ficcional “ocasionalmente” discute ações que corporações e governos podem tomar para reduzir danos, destaca a pesquisa. 

“O público vê os danos das mídias sociais em suas próprias vidas e está ansioso por histórias que vão além dos desafios parentais ou vilões de tecnologia singulares. Eles estão buscando cobertura da mídia que associe a infraestrutura corporativa a danos ou dramatize como poderia ser a responsabilização”, disse Erica Rosenthal,  principal autora da pesquisa.

Como filmes e séries podem mudar a narrativa sobre as Big Techs? 

O relatório oferece recomendações [ara roteiristas e criadores de conteúdo, visando alinhar o entretenimento com a realidade dos danos das redes sociais e as expectativas do público e de especialistas, incluindo reguladores. 

  • Ampliar o escopo dos danos: Embora a juventude seja um foco comum, os criadores devem considerar histórias que ilustrem uma gama mais ampla de danos associados às redes sociais, incluindo impactos em comunidades marginalizadas, mudanças climáticas ou saúde pública.
  • Destacar os verdadeiros impulsionadores do dano, chamando a atenção para as práticas comerciais e funções algorítmicas das Big Techs.  
  • Ir além de heróis e vilões individuais: Em vez de retratar líderes da indústria de tecnologia como figuras singulares, as histórias deveriam também conectar esses indivíduos aos modelos de negócios prejudiciais e às economias de vigilância que eles projetaram.
  • Inverter a narrativa comum: Criadores de entretenimento têm a oportunidade de mostrar como as práticas corporativas restringem e impulsionam as escolhas individuais.
  • Mostrar ação coletiva para a mudança sistêmica: Roteiros “apocalípticos” podem fazer as pessoas sentir que problemas complexos são insolúveis. O relatório sugere modelar o tipo de engajamento coletivo e formação de coalizões que podem inspirar o público a imaginar e trabalhar por um futuro melhor.

O estudo completo pode ser visto aqui.