A tragédia da liberdade de imprensa em Gaza — com cerca de 200 jornalistas mortos e bloqueio total ao acesso da mídia estrangeira — é hoje o retrato mais extremo do risco de cobrir uma região de conflito.
Na guerra entre Rússia e Ucrânia, que reuniu os principais líderes mundiais para a costura de um acordo de paz – há registros de mortes resultantes de ataques diretos a profissionais de imprensa e vários ucranianos ainda desaparecidos.
Mas no Afeganistão, que ficou esquecido quatro anos após a retomada do poder pelo Talibã (em 15 de agosto), as mortes não são apenas estatísticas. O que morreu foi o jornalismo livre — sobretudo aquele praticado por mulheres.
Um novo relatório do CPJ (Comitê para Proteção dos Jornalistas) descreve como a mídia independente do país foi aniquilada e substituída por um império de propaganda, sustentado por rádios e TVs estatais, plataformas digitais controladas e uma operação coordenada de desinformação.
Mídia independente apagada e medo generalizado
O autor do relatório é Waliullah Rahmani, pesquisador do CPJ para a Ásia.
Entre 2016 e a queda de Cabul em agosto de 2021, ele foi fundador e diretor da Khabarnama Media, uma das primeiras organizações de mídia digital do país — experiência que o coloca como testemunha direta do que foi perdido e do que se instalou no lugar: um regime de censura total.
O CPJ entrevistou 10 jornalistas afegãos, dentro e fora do país. Nenhum aceitou ser identificado, por medo de represálias. Todos descrevem um cenário no qual veículos independentes que antes alcançavam milhões foram banidos, suspensos, fechados ou tomados pelo Talibã.
Nesse vácuo, o regime passou a operar cerca de 15 canais de TV e rádio, jornais e plataformas digitais — incluindo YouTube, X (Twitter) e Telegram — alinhados estritamente à ideologia islamista radical do grupo.
“A autoridade governante impõe uma política de mídia monolítica, rejeitando qualquer notícia, narrativa ou voz que se desvie do que consideram a verdade.
Até opiniões pessoais no Facebook são tratadas como propaganda e punidas”, disse ao CPJ Ahmad Quraishi, diretor do exilado Afghanistan Journalists Center.
Jornalistas transformados em espiões
Vários profissionais relataram ao CPJ uma sensação de viver sob uma “polícia da mídia”. Um executivo de TV do leste do país descreveu um sistema em que cada jornalista é instado a espionar colegas.
Agentes exigem dados pessoais completos de funcionários — nomes, filiação, endereços, telefones, e-mails e números de WhatsApp — e cobram relatórios constantes.
Segundo o CPJ, agentes de inteligência monitoram e detêm repórteres por publicações nas redes sociais, enquanto a polícia da moralidade prende quem viola sua interpretação estrita da Sharia — que inclui proibição de música, novelas e programas coapresentados por homens e mulheres.
Dois proprietários de veículos no norte e no leste disseram ao CPJ ter sofrido auditorias invasivas de receita e atrasos administrativos por serem considerados pouco “conformes”.
“Agentes abordam jornalistas em privado, pressionando-os a espionar colegas ou empurrar narrativas específicas. Quem recusa pode ser demitido ou o veículo sofre com licenças e multas”, relatou um deles.
Em maio, um porta-voz do Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício afirmou ter realizado mais de 1 mil reuniões com a mídia ao longo do último ano para “coordenar a promoção de valores da Sharia” — entendidas localmente como encontros de enquadramento às regras da polícia da moral, segundo o CPJ.
Mulheres jornalistas sob ameaça direta
Duas jornalistas do oeste do país disseram ao CPJ que foram convocadas mais de 10 vezes nos últimos dois anos.
“Interrogaram-me por três horas perguntando por que eu trabalhava em vez de ficar em casa”, relatou uma delas.
Em outra ocasião, segundo contou ao CPJ, ouviu que se trabalhasse com veículos no exílio seria wajib al-qatl (permissível matá-la).
“Disseram que poderiam me deter por uma semana apenas para extrair uma confissão — e ninguém saberia.”
Jornalismo no exílio sob cortes e riscos
O CPJ destaca que jornalistas no exílio são uma das últimas fontes de informação independente ainda transmitidas ao Afeganistão.
Mesmo assim, enfrentam riscos de segurança, dificuldades econômicas e perda de empregos, além de possível repatriação forçada em razão de cortes de financiamento nos Estados Unidos para a VOA (Voice of America) e a RFE/RL (Radio Free Europe/Radio Liberty), emissoras financiadas pelo Congresso.
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Como funciona a máquina de propaganda
No centro do ecossistema está a Radio Television Afghanistan (RTA), que transmite em pashto (a língua preferida do Talibã), dari, inglês e árabe.
A divisão de rádio foi rebatizada como “Voice of Sharia Radio”. Com mais de 500 funcionários e orçamento de cerca de 600 milhões de afeganes (US$ 8,8 milhões), a RTA difunde reportagens que promovem “conquistas” do regime, segundo o CPJ.
A Bakhtar News Agency, fundada em 1939 e subordinada ao Ministério da Informação, opera com cerca de 60 funcionários em Cabul e quatro repórteres em cada uma das 34 províncias.
Publica em oito idiomas, incluindo mandarim e turco. O mesmo ministério mantém os diários Anis (dari), Hewad (pashto) e The Kabul Times (inglês), em versões impressas e online.
Rádios e sites sob a inteligência
Segundo três jornalistas de Cabul ouvidos pelo CPJ, agências de segurança operam três rádios:
- Hurriyat Radio (desde 2022), criada pela GDI (Diretoria Geral de Inteligência), com site, YouTube e emissoras locais em expansão; 26 funcionários em Cabul e correspondentes provinciais. A cobertura enfatiza rivalidades regionais e supostas vitórias sobre o Estado Islâmico-Khorasan (IS-K).
- Radio Omid (2023), do Ministério da Defesa, gerida pelo gabinete do porta-voz, dedicada a feitos do ministério.
- Radio Police (relançada em 2021), do Ministério do Interior, focada em ações policiais em províncias como Cabul e Kandahar.
Nos meios digitais, o CPJ aponta quatro projetos principais, ao menos três sob a GDI:
- Al Mirsad, multilíngue e criado em 2023 para confrontar as narrativas do IS-K; minimiza a presença do grupo no país e ressalta “sucessos” talibãs. É financiado e operado pela GDI, e seus gestores seniores têm ligação com o ministro do Interior Sirajuddin Haqqani.
- Maihan, baseado no YouTube, dedicado a desqualificar opositores; tem 12 funcionários e é liderado por Jawad Sargar, ex-subdiretor da diretoria de mídia e publicações da GDI. Ao ser contatado, Sargar respondeu ao CPJ: “Esses assuntos não dizem respeito a vocês”, e pediu que o CPJ parasse de contactá-lo.
- Yad (YouTube): cronologia oficial do Talibã e críticas a rivais; financiado, gerido e operado pela GDI.Alemarah: site oficial do Talibã, ativo antes de 2021, sob responsabilidade do porta-voz Zabihullah Mujahid.
A fábrica de desinformação
O CPJ descreve quatro escritórios na GDI dedicados a campanhas coordenadas de desinformação. Dezenas de criadores recebem 6.000 a 10.000 afeganes por mês (US$ 88–146) para operar contas falsas que atacam críticos, difamam ativistas e simulam apoio popular.
A operação é atribuída a figuras como Jabir Nomani (vice-diretor de mídia e publicações da GDI), Jawad Amin (ex-porta-voz da GDI), Jawad Sargar (que dirige o Maihan) e Fazlur Rahman Orya — este último nega envolvimento e dirige o Sahar Discourse Center, que assessora o Talibã em políticas. Nomani não respondeu às solicitações do CPJ.
Para Qais Alamdar, fundador exilado da IntelFocus que monitora os bots, o padrão é inequívoco: postagens quase idênticas, em minutos, para engordar a legitimidade do governo ou abafar notícias alternativas (por exemplo, ataques ao Talibã).
“Só alguém com acesso consistente a eletricidade, internet e tempo poderia manter esse tipo de operação no Afeganistão”, disse ao CPJ.
O noticiário permitido: acidentes de trânsito
Como resultado direto da repressão, muitos veículos foram fechados ou banidos. No Vale do Panjshir — antes, coração da resistência — não resta mídia ativa, disse ao CPJ Ahmad Hanayesh, ex-proprietário de duas rádios, hoje no exílio.
Repórteres de Herat, Nangarhar, Faryab e Bamiyan relataram que, além de educação e saúde, o único tema “sério” permitido são acidentes de trânsito. Cobertura policial e criminal está proibida.
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