O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, está avançado em sua campanha sistemática para enfraquecer a mídia americana e eliminar sua função de responsabilizar a ele e a outros que estão no poder – a base da liberdade de imprensa.
Desde o fim do século 18, essa função da imprensa é muitas vezes chamada de quarto poder (fourth estate). É a ideia de que a imprensa atua como cão de guarda sobre os outros três poderes que, nas democracias modernas, são o parlamento, o governo executivo e o judiciário.
Nos EUA, Trump já teve considerável sucesso em enfraquecer esses três.
Seu Partido Republicano controla as duas casas legislativas do Congresso e não deu qualquer sinal de desejar conter as iniciativas do presidente.
Ele entupiu a máquina executiva do governo com aliados pessoais e ideológicos, incluindo Robert F. Kennedy Jr. (e sua agenda antivacinação) como secretário da Saúde, uma breve passagem de Elon Musk como chefe do Departamento de Eficiência Governamental, e o ex-apresentador da Fox News Pete Hegseth como secretário da Defesa.
Ele obteve o apoio do Partido Republicano para moldar a Suprema Corte com juízes alinhados politicamente, que rotineiramente derrubam decisões de instâncias inferiores contra Trump – em especial no caso de deportações de migrantes para países que não eram seus de origem.
Cortando verbas, aplicando pressão
A investida contra o quarto poder começou para valer em março, quando Trump retirou verbas federais da Voice of America, um serviço público de radiodifusão com alcance global, alegando que era “anti-Trump” e “radical”.
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Os cortes também atingiram dois outros braços do soft power americano, a Radio Free Europe e a Radio Free Asia.
Em julho, ele cortou o financiamento da Corporation for Public Broadcasting (CPB), em uma medida que pôs fim a todo o apoio federal à National Public Radio, ao serviço público de televisão e às emissoras afiliadas.
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Imprensa independente no alvo de Trump
Agora, ele se voltou para a mídia comercial. Como não tem poder de cortar o financiamento, o governo Trump está adotando outra abordagem: extorsão financeira e ameaças aos fundamentos de seus negócios.
Em outubro de 2024, ainda antes de ser eleito, Trump processou a Paramount em US$10 bilhões (cerca de R$ 55 bilhões).
Ele alegou que uma entrevista com Kamala Harris, durante a campanha presidencial de 2024, teria sido “editada de forma enganosa” pela rede CBS, subsidiária da Paramount.
Em fevereiro de 2025, já empossado, Trump dobrou a aposta, exigindo US$20 bilhões (R$ 110 bilhões).
Advogados consideravam o caso sem mérito jurídico. Mas a Paramount estava prestes a se fundir com a Skydance Media, fusão sujeita à aprovação regulatória do governo Trump.
A Paramount estava, portanto, vulnerável a — digamos assim — chantagem? Extorsão? Suborno?
Um julho agitado e perigoso
No dia 2 de julho, a Paramount fez um acordo com Trump, pagando US$16 milhões (R$ 88 milhões), destinados oficialmente a financiar sua biblioteca presidencial.
Em 17 de julho, a rede CBS da Paramount anunciou o cancelamento do histórico Late Show, previsto para maio de 2026, após seu apresentador Stephen Colbert — crítico ferrenho de Trump — condenar a capitulação corporativa. Pouco depois, a administração Trump aprovou a fusão.
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Logo em seguida, comitês da Câmara dos Deputados anunciaram investigação sobre se o acordo de US$16 milhões configurava suborno.
Também em julho, Trump processou o Wall Street Journal, de Rupert Murdoch, por difamação, após o jornal relacioná-lo ao traficante sexual Jeffrey Epstein. Pediu US$10 bilhões (R$ 55 bilhões).
Especialistas jurídicos avaliam que Trump tem chance praticamente nula de vencer.
Nos EUA, figuras públicas só ganham processos de difamação se provarem que a publicação foi motivada por malícia — isto é, que publicou sabendo que era falso ou sem se importar com a veracidade.
Esse processo dificilmente chegará a julgamento, nem Trump verá um centavo de Murdoch. Ambos precisam demais um do outro.
É, parafraseando a Guerra Fria, uma relação MAD: Destruição Mútua Assegurada.
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Submissão em série
Rupert Murdoch foi convidado ao Castelo de Windsor no banquete recente oferecido a Trump pelo rei Charles.
Considerando o histórico amargo de Murdoch com a família real, é difícil imaginar o Palácio de Buckingham convidando-o sem o pedido de Trump. Pode ter sido um sinal de reaproximação entre os dois.
Enquanto isso, Trump voltou-se contra o New York Times, processando-o por difamação e exigindo US$15 bilhões (R$ 82 bilhões).
Referindo-se ao endosso do jornal a Kamala Harris na eleição de 2024, disse que o Times se tornara um “porta-voz do Partido Democrata Radical de Esquerda”.
Esse processo enfrenta as mesmas dificuldades que a ação contra o Wall Street Journal. A questão é se o Times resistirá ou se, como a Paramount, cederá.
Jornais americanos se dobraram a Trump
Dos três grandes jornais dos EUA, o Times é o único até agora a não se intimidar com Trump.
Os outros dois, o Washington Post e o Los Angeles Times, se recusaram a endossar um candidato nas eleições, por instrução de seus proprietários, Jeff Bezos e Patrick Soon-Shiong, cujos negócios mais amplos são vulneráveis à retaliação trumpista.
A decisão do Post foi condenada como “covarde” por seu celebrado ex-editor Marty Baron.
Agora, a Disney está na mira. Ela é dona de outra das quatro grandes redes de TV dos EUA, a ABC. Em 17 de setembro, retirou do ar o programa Jimmy Kimmel Live.
Kimmel havia respondido às acusações da Casa Branca de que a esquerda seria responsável pelo assassinato de Charlie Kirk, afirmando:
“Chegamos a novos patamares no fim de semana, com a turma MAGA tentando desesperadamente caracterizar esse garoto que matou Charlie Kirk como qualquer coisa que não fosse um deles.”
Em um gesto que soou como capitulação preventiva, a ABC e duas afiliadas tiraram Kimmel do ar indefinidamente, após Brendan Carr, presidente da Comissão Federal de Comunicações indicado por Trump, dizer que a agência poderia “agir” contra a emissora por causa dos comentários.
Kimmel voltou ao ar, mas o estrago já estava feito.
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Cabeças rolaram e emissoras são ameaçadas
Na MSNBC, o analista político Matthew Dowd foi demitido após afirmar no ar o óbvio: que a retórica radical de Kirk pode ter contribuído para o tiroteio que o matou.
A MSNBC não faz mais parte da rede NBC, então não se pode dizer que a NBC em si já tenha se curvado.
Menos de 24 horas após a ameaça velada de Brendan Carr, Trump deixou de lado o disfarce e a tornou explícita:
“Tudo o que eles fazem é atacar Trump. Eles têm concessões, não podem fazer isso. São um braço do Partido Democrata. Eu acho que talvez devêssemos tirar a concessão.”
Se cancelar uma concessão violaria a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que protege a liberdade de expressão, é uma questão que pode acabar na Suprema Corte.
Dadas as atuais inclinações ideológicas do tribunal, o resultado está longe de ser previsível.
Trump já conseguiu intimidar dois dos três grandes jornais nacionais e duas das quatro grandes redes de TV.
Restam apenas um jornal e duas redes nacionais — e uma delas é a Fox News de Murdoch, justamente a mais fiel aliada midiática de Trump.
Este artigo foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.