Em resumo
- Prêmio Earthshot pediu para chef renomado elaborar cardápio totalmente vegano para o príncipe William.
- Chef considerou pedido ofensivo e atitude levantou debate sobre sustentabilidade e colonialismo.
Um cardápio vegano, sem alternativas da culinária amazônica como o peixe pirarucu, solicitado pelos organizadores do prêmio ambiental do Príncipe William para a cerimônia de premiação no Rio de Janeiro virou motivo de questionamento sobre colonialismo na alimentação.
Saulo Jennings, um aclamado chef amazônico e embaixador do turismo gastronômico da ONU, se demonstrou indignado quando os organizadores do prêmio Earthshot, iniciativa global do príncipe William, lhe pediram para preparar um menu inteiramente vegano.
Para Jennings, ser instruído a excluir o pirarucu – o icônico peixe gigante de água doce da região – não era apenas uma questão de preferência, mas uma falta de respeito por suas tradições culinárias.
O príncipe William fundou o prêmio Earthshot para celebrar soluções inovadoras para os maiores desafios ambientais do planeta. A cerimônia deste ano acontece no dia 5 de novembro no futurista Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, marcando a primeira vez que a premiação do Earthshot será realizada na América Latina.
O evento acontece antes da abertura da COP30, que começa no dia 10 de novembro em Belém, no coração da Amazônia, enfatizando a importância central da região nos debates climáticos.
Jennings havia concordado em criar uma seleção de canapés para a cerimônia de premiação, e foi aí que surgiu o mal-entendido. Ele elaborou um menu com uma opção vegana, mas foi informado de que toda a seleção deveria ser vegana, o que significava que ele não poderia incluir nenhum prato com pirarucu.
“Foi como pedir ao Iron Maiden para tocar jazz”, disse ele ao New York Times.
“Foi uma falta de respeito pela culinária local, pela nossa tradição gastronômica.”
Menu vegano ‘inspirado na Amazônia’ para o príncipe William
A pedido do museu, Jennings concordou em criar um menu vegano inspirado na Amazônia, utilizando ingredientes nativos. Mas, a essa altura, o acordo já havia fracassado e outra equipe foi selecionada para servir a comida na cerimônia de premiação.
Em vez disso, Jennings foi contratado para cozinhar para as delegações norueguesa e chinesa na COP30 e também supervisionará a comida para o banquete da COP, preparado para os chefes de estado presentes na conferência.
Nessas ocasiões, ele poderá destacar os diversos sabores da Amazônia e, respeitosamente, garantiu que servirá pirarucu.
Ao insistir em um cardápio vegano, o prêmio Earthshot efetivamente equiparou o veganismo à sustentabilidade. Mas, embora os dois conceitos possam se sobrepor, não são a mesma coisa. Alguns alimentos veganos, como o abacate, têm uma grande pegada de carbono.
Este é apenas um exemplo de como iniciativas ambientais ocidentais bem-intencionadas podem, involuntariamente, entrar em conflito com os valores e práticas alimentares das comunidades que pretendem celebrar.
Imposições sobre práticas alimentares sustentáveis
As imposições ocidentais sobre as culturas alimentares indígenas remontam aos tempos coloniais. Os primeiros colonizadores europeus viam suas próprias culturas básicas, como o trigo e a cevada, como símbolos de civilização.
Por outro lado, muitas vezes descartavam alimentos indígenas, como grãos andinos como a quinoa e o amaranto, considerando-os “primitivos”.
Esse legado ainda molda as hierarquias alimentares atuais. No Peru, por exemplo, comunidades nos Andes estão substituindo as tradicionais batatas por macarrão e arroz.
Atualmente, os consumidores – tanto no Brasil quanto globalmente – desempenham um papel no reforço de ideias ocidentais por meio de suas escolhas de compra e percepções de alimentos “autênticos”, “exóticos” ou “saudáveis”, que moldam a troca de alimentos entre diferentes países e segmentos de mercado, ao mesmo tempo que distorcem as economias e tradições locais.
Em Belém, o açaí é um ingrediente básico da culinária local, tradicionalmente consumido pelos moradores com farinha de mandioca e peixe.
Mas em outras regiões do Brasil – e cada vez mais internacionalmente – ele se tornou conhecido como um “superalimento” em pó ou congelado, ou é misturado em tigelas de açaí.
Em nações pós-coloniais, as elites locais – geralmente compostas por pessoas não indígenas que historicamente se alinharam aos gostos e valores ocidentais – podem, por vezes, tanto reforçar quanto desafiar essas desigualdades.
Ingredientes amazônicos na alta gastronomia
Na cena culinária brasileira, chefs de elite assumiram a liderança na definição de uma nova alta gastronomia nacional que valoriza os ingredientes amazônicos por meio de técnicas refinadas.
Por exemplo, o renomado chef brasileiro Alex Atala eleva o pirarucu ao reinterpretar o peixe utilizando técnicas e apresentações inovadoras em seu restaurante em São Paulo, o DOM.
No entanto, isso pode desvincular os ingredientes de seus usos originais e pressionar os produtores a entregarem mais, o que pode levar a práticas insustentáveis. Portanto, Atala também se compromete com o avanço da sustentabilidade, da pesquisa e da preservação cultural por meio do Instituto Ata, que visa mostrar a diversidade tanto da cultura brasileira quanto do seu meio ambiente.
Which adventurous Foodie Tweetees will join Alex Atala inTheHeart of the Amazon? http://t.co/igPw9RjN6a via @guardian pic.twitter.com/je0HVUMGIQ
— AFRICA: Seen & Heard (@AFRICASeenHeard) September 2, 2013
Para a chef indígena Tainá Marajoara, existe o risco de a elite cultural brasileira estar se apropriando indevidamente das tradições indígenas – e utilizando ingredientes amazônicos sem reconhecer devidamente a dívida que essa culinária moderna tem para com as culturas das quais foi apropriada.
Marajoara – que, assim como Jennings, é embaixadora da gastronomia na ONU – criticou duramente o que considera a mentalidade dominante entre os chefs brasileiros.
Ela declarou à revista gastronômica Saveur que alguns chefs renomados acreditam que “a culinária de pessoas de pele escura precisa ser atualizada, como se não tivéssemos uma sabedoria e uma estética próprias”.
Descolonizando as ideias ocidentais sobre sustentabilidade
Muitas comunidades indígenas adotam uma visão “kincêntrica” do mundo natural, o que significa que consideram os seres humanos, as plantas e os animais como membros interligados de uma família ecológica compartilhada, em vez de entidades separadas.
Segundo Jennings, sustentabilidade significa viver em harmonia com os ritmos da natureza – não impor regras alimentares uniformes. Como ele disse ao New York Times:
“Comemos o que as florestas nos dão, o que os rios nos dão. Alguns dias comemos peixe; outros dias comemos nozes e açaí. Isso também é sustentável.”
A verdadeira sustentabilidade exige respeito cultural e ecológico. Na Cop30, Jennings e Marajoara criarão menus baseados na profunda relação de suas culturas com o mundo natural. Seu objetivo é demonstrar que a sustentabilidade deve ser uma prática vivida, e não apenas retórica política.
Espera-se que a participação deles reforce a importante mensagem de que soluções climáticas significativas dependem da liderança e do conhecimento indígena.
Reduzir a lacuna entre as suposições ocidentais e as realidades ecológicas locais continua sendo uma necessidade urgente. Marajoara alerta:
“Enquanto as terras ancestrais forem violadas e a violência se espalhar pelas florestas, rios e campos, nosso povo e nossa cultura estarão sendo destruídos.”
Este texto foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é reproduzido aqui sob licença Creative Commons.

