Em resumo
- Relatório interno aprofundou crise institucional da BBC ao expor decisões editoriais polêmicas, incluindo corte em fala de Trump.
- Saída dos diretores ocorre em meio a pressões políticas e desgaste da imagem da emissora pública britânica.
A saída dos principais executivos da BBC marca mais um capítulo turbulento na trajetória recente da emissora, que enfrenta críticas crescentes sobre imparcialidade editorial envolvendo temas como política internacional, guerras e identidade de gênero.
Um relatório interno vazado na semana passada apontando falhas de imparcialidade editorial na BBC, incluindo a edição considerada enganosa de um discurso de Donald Trump, levou à renúncia do diretor-geral da rede, Tim Davie, e da diretora-geral de jornalismo, Debora Turness, aprofundando ainda mais a crise vivida pela emissora pública britânica nos últimos anos.
Antes da renúncia ser divulgada, no domingo (9), a BBC havia confirmado que emitiria nesta segunda-feira uma carta formal de desculpas ao Parlamento britânico pela forma como falas de Trump no dia da invasão do Capitólio foram exibidas em um programa em 2024, omitindo um trecho em que ele pedia que seus apoiadores protestassem de forma pacífica.
Mas a promessa não foi suficiente para acalmar os ânimos, pois desde que o jornal Daily Telegraph publicou o relatório, as críticas à conduta da rede se avolumaram dos dois lados do Atlântico.
A porta-voz do presidente dos EUA, Karoline Leavitt, rotulou a rede como “máquina de propaganda esquerdista”.
Embora os dois executivos tenham tenham afirmado que a decisão de deixar a BBC teve como objetivo “preservar a integridade da instituição diante da crise de confiança” e Turness tenha negado a possibilidade de ‘viés ideológico institucional’, a crise está longe de acabar.
O relatório que aprofundou a crise na BBC: Trump, Gaza e gênero
O relatório que expôs o caso do discurso de Trump e também outras decisões editoriais controvertidas da BBC foi feito por Michael Prescott, jornalista e consultor externo que atuou por três anos junto ao Comitê de Diretrizes e Padrões Editoriais da rede.
O trabalho foi encomendado após críticas crescentes intensas sobre a imparcialidade, que começam principalmente no governo do ex-primeiro-ministro Boris Johnson, e se acentuaram ainda mais após a guerra em Gaza.
Após finalizar sua missão, em junho de 2025, Prescott entregou um documento de 19 páginas ao Conselho da emissora e ao Parlamento britânico.
O texto acusa a BBC de ter “mutilado” o discurso de Trump e afirma que o episódio do programa Panorama “iludiu completamente os espectadores”.
Além do caso Trump, o relatório aponta uma série de outras falhas editoriais, incluindo cobertura tendenciosa sobre o Brexit, identidade de gênero, mudanças climáticas e política internacional.
Mas o caso Trump foi o que mais reverberou e provocou a ruptura da gestão após cinco anos de crises sucessivas incluindo questões editoriais e também episódios como a condenação do apresentador Huw Edwards, uma das estrelas da casa, por crime sexual.
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O discurso cortado
O polêmico episódio do Panorama, programa dedicado a reportagens especiais sobre temas da atualidade, foi ao ar antes das eleições presidenciais nos EUA em 2024, relembrando momentos da primeira gestão Trump.
Nele, a BBC exibiu Trump dizendo:
“We fight like hell. And if you don’t fight like hell, you’re not going to have a country anymore. (Lutamos com tudo. E se vocês não lutarem com tudo, não terão mais um país).”
No entanto, o programa omitiu uma parte essencial da fala, em que Trump também dizia:
“I know that everyone here will soon be marching over to the Capitol building to peacefully and patriotically make your voices heard (Eu sei que todos aqui em breve estarão marchando até o Capitólio para, de forma pacífica e patriótica, fazerem suas vozes serem ouvidas).”
A edição criou a impressão de que Trump havia incitado diretamente a violência, o que foi considerado enganoso por críticos e, agora, pela própria BBC no que talvez seja a sua mais grave crise até hoje.
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Reação do governo Trump
A porta-voz de Donald Trump, Karoline Leavitt, reagiu com dureza à revelação do Daily Telegraph, um jornal alinhado à direita e crítico histórico da rede. Em entrevista, ela declarou:
“A BBC é uma máquina de propaganda esquerdista — 100% fake news.”
Ela também afirmou que assistir à BBC quando viaja para o Reino Unido com o presidente dos EUA “arruina seu dia”. E criticou o fato de os britânicos serem “forçados a pagar por uma emissora que distorce os fatos”.
Imparcialidade, audiência e taxa obrigatória da BBC
Leavitt tocou no ponto nevrálgico da crise da BBC, que opera sob um modelo de financiamento diferente até da maioria das redes públicas de TV no mundo.
Embora tenha um braço comercial que produz filmes e séries vendidas no mundo inteiro, o jornalismo da rede é inteiramente financiado por recursos públicos, tanto do orçamento do governo quanto de uma taxa obrigatória paga pelas residências que acessam os canais pela TV, rádio ou internet.
A BBC é parte do “soft power” britânico, com redações em vários países e serviços em línguas locais para levar conteúdo confiável a mercados em que a informação não circula de forma livre.
Dessa forma, colabora com as sociedades locais e com a reputação internacional do Reino Unido, fazendo com que o mundo conheça e admire seus costumes, sua história e a magia da família real.
Por isso, a rede é regulada e responde ao Parlamento pelas suas atividades e resultados, incluindo de audiência – que vem caindo significativamente sobretudo entre jovens.
A “contrapartida” para receber recursos é audiência e também imparcialidade, um conceito complexo no jornalismo de forma geral – e que se torna ainda mais complexo em sociedades polarizadas.
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O documentário sobre Gaza: retirado do BBC iPlayer
O caso de Donald Trump, ocorrido há cinco anos, é um dos pontos apontados pelo relatório de Prescott. Outro caso notório foi o do documentário “Gaza: How to Survive a Warzone”, lançado no início deste ano.
O programa foi narrado por Abdullah, filho de Ayman Alyazouri, que ocupava o cargo de vice-ministro da Agricultura no governo do Hamas em Gaza. A BBC foi acusada de violação das diretrizes editoriais de precisão, por não divulgar essa ligação familiar.
A BBC reconheceu a falha e retirou o documentário do BBC iPlayer em fevereiro de 2025.
O relatório abordou ainda outras questões que contribuíram para a crise institucional de imparcialidade.
A investigação apontou inconsistências na forma como a BBC cobriu eventos em Israel, Ucrânia e China, com alegações de viés ocidental. Houve críticas à falta de diversidade de vozes e perspectivas em programas de análise política e internacional.
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Consequências
A carta de desculpas ao Parlamento e a renúncia dos principais líderes pode não ser suficiente para estancar a crise da BBC.
Parlamentares estão cobrando uma investigação formal sobre a imparcialidade da rede, que agora enfrenta o desafio de restaurar sua credibilidade diante do público britânico e internacional.
E principalmente, de garantir recursos para seguir operando sem ser jogada aos leões da competição com redes privadas ou serviços de streaming, como é a intenção de boa parte de seus críticos.
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