Em resumo
- Venda do jornal conservador Daily Telegraph para o grupo dono do Daily Mail, jornal de maior circulação impressa no país foi recebida com desânimo pela esquerda.
- Lord Rothermere, ‘barão da imprensa’ que lidera o conglomerado, foi apontado como grande vencedor de uma batalha pelo controle do jornal que se arrastava desde 2023.
A venda do jornal britânico conservador Daily Telegraph, anunciada neste sábado (22), por £ 500 milhões, coloca fim a um longo enredo que se estende desde 2023, quando o Lloyds Bank confiscou o título devido a uma dívida bilionária dos então donos, os irmãos Barclay. E representa muito mais do que uma transação comercial.
O novo dono é o grupo DMGT, que possui um vasto portfólio de publicações, liderado pelo tabloide de direita Daily Mail. Ele é comandado por Lord Rothermere, um dos descendentes da família que fundou o Daily Telegraph em 1896.
A aquisição é vista como um golpe de mestre. Isso porque, após o confisco em 2023, os irmãos Barclay tinham chegado a recuperar temporariamente a propriedade do Telegraph, pagando £ 1,2 bilhão ao Lloyds.
Em seguida, venderam a empresa para o consórcio RedBird IMI, que nunca exerceu controle direto por falta de aprovação das autoridades regulatórias. O jornal seguiu no limbo, sem “chefe” comandado apenas pela redação – que não queria o RedBird como novo proprietário.
O fundo capitulou na semana passada, ao ver suas chances de aprovação reduzida. E deixou o Telegraph de presente para Rothermere, que tinha sido um dos interessados no início, mas ficou pacientemente aguardando os ventos soprarem a seu favor.
A venda do Daily Telegraph e a política britânica
A transferência do controle do Telegraph acontece no contexto de uma inclinação do país para a direita – ou, mais precisamente, para a extrema direita. O partido Reform, do controvertido Nigel Farage, está em primeiro lugar nas intenções de voto nas próximas eleições.
Como a imprensa britânica tem predileção política declarada, a propriedade dos meios de comunicação tem relação direta com eleições.
Os jornais sempre foram historicamente alinhados às duas grandes forças políticas do país, o Partido Conservador e o Trabalhista – isso até surgir o Reform, com reais chances de eleger o próximo primeiro-ministro, em maio de 2026.
Dentre os três jornais nacionais que não são tabloides (os que não falam apenas de crimes e celebridades, exercendo influência política significativa sobre as classes média e baixa), apenas um, o The Guardian, é alinhado aos Trabalhistas.
Os dois outros seguem alinhados aos conservadores, sob a propriedade de expoentes da elite. O The Times pertence ao magnata da mídia Rupert Murdoch.
E o Daily Telegraph, que era, desde 2004, dos gêmeos David e Frederick Barclay, donos de um império que incluía empreendimentos imobiliários e o hotel Ritz de Londres, passa agora às mãos de um lord.
The Guardian ecoa vozes da esquerda lamentando a venda
O The Guardian liderou os lamentos pela conclusão da venda, que poderia até ter sido pior.
Isso porque a desistência do fundo americano RedBird IMI tirou do caminho um outro medo que cada vez mais assombra o país: o da influência estrangeira, sobretudo da Rússia e da China.
A família real dos Emirados Árabes Unidos tinha 15% do negócio liderado pelo RedBird IMI, o que despertara forte reação negativa pela entrada de capital estrangeiro norte-americano e árabe no controle de um jornal – o que dificultava a aprovação da transação pelo governo trabalhista do primeiro-ministro Keir Starmer.
Mesmo assim, para o The Guardian, assim como para vozes influentes da esquerda e do campo liberal-democrata, a compra do Daily Telegraph por Rothermere é um passo para trás, e pode ter consequências na agenda política do país.
A manchete sobre a venda foi:
“A aquisição do Telegraph por Lord Rothermere fortalece a inclinação de direita da mídia do Reino Unido”.
Não está errado, mas carrega uma dose de exagero e frustração injustificada, pois não foi um desfecho inesperado.
Porque as coisas podem não mudar tanto assim?
Primeiro, porque o Daily Telegraph sempre foi de direita, e a mudança de mãos em nada muda seu posicionamento político.
Mas desde o governo de Boris Johnson (que até ser primeiro-ministro tinha uma coluna semanal no jornal e hoje escreve para o Daily Mail do mesmo lorde Rothermere, o Telegraph passou a se notabilizar por manchetes incendiárias.
Com títulos panfletários, as capas incitam aversão a imigrantes, defendem teses nacionalistas que ajudam a polarizar ainda mais o país, e criticam políticas de proteção ambiental como o Net-Zero, tratadas pejorativamente como “woke” (politicamente corretas no mau sentido). O tom jornalístico não é muito diferente daquele adotado pelos tabloides.
O The Times, seu “equivalente” no espectro político, pode até defender teses parecidas, mas raramente com enfoque tão extremista e agressivo.
Além disso, beira o pensamento mágico achar que o desfecho seria outro.
04No cenário atual da indústria de mídia global, com grandes conglomerados e empreendedores bilionários adquirindo plataformas digitais e títulos em dificuldades financeiras – como nos casos de Elon Musk e o Twitter, ou de Jeff Bezos e o Washington Post – e nenhum dinheiro vindo de fundações ou organizações não-governamentais para equilibrar esse jogo, o Telegraph dificilmente iria para mãos muito diferentes.
Por outro lado, a venda para um grupo local pode ser vista como um alívio para o que temiam que um significativo poder de influência editorial passasse às mãos de controladores estrangeiros.
Concentração da propriedade de mídia e democracia
As reações contrárias à venda do Telegraph para o DMGT também se referem à concentração, uma das métricas consideradas essenciais pela Repórteres Sem Fronteiras em seu índice global de liberdade de imprensa. Ela é associada à democracia saudável, por limitar a pluralidade de opiniões.
Em entrevista ao The Guardian, Tom Baldwin, o ex-editor de política do Sunday Telegraph (a versão dominical do jornal) e ex-diretor de comunicações do Partido Trabalhista, abordou o tema:
“A imprensa da Grã-Bretanha já está perigosamente inclinada para um ponto de vista homogêneo, de direita e irritado. Uma fusão entre o Daily Mail e o Telegraph só vai exacerbar isso.”
Um barão da imprensa de verdade
Se vai exacerbar ou não o clima político, o tempo dirá. Lord Rothermere, além de um astuto negociante, tem a seu favor o fato de ser um homem de jornal, lembrando os antigos “barões da imprensa”.
Discreto e raramente fotografado, ele é neto do irmão do fundador do Daily Mail, Harold Harmsworth, que geriu com mão de ferro o título lançado em 1896 e voltado para leitores de classe média-baixa, com manchetes curtas e textos simples.
Atendendo pelo nome pomposo de Jonathan Harold Esmond Vere Harmsworth, Quarto Visconde Rothermere, o novo dono do Telegraph tem 57 anos e assumiu aos 31 anos o grupo DMGT, após a morte do pai.
Lorde Rothermere faz parte da lista dos homens mais ricos do país e sempre manteve relacionamento discreto com a elite política, sem exposição pessoal, ao contrário do “barão” mais conhecido, Rupert Murdoch.
Ainda assim, não escapa de controvérsias, como acusações de ter usado fundos off-shore para escapar de taxação de impostos.
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DMGT: força na imprensa britânica
Sob seu comando, o DMGT tornou-se uma potência na imprensa britânica, por meio de jornais que já faziam parte do grupo, como o Daily Mail e sua versão dominical, Mail on Sunday. O conglomerado inclui uma série de jornais regionais, e cresceu por aquisições.
Eles agora têm o Metro, distribuído no transporte público, e jornal i (assim mesmo, com letra minúscula). O grupo atinge 10 milhões de pessoas diariamente.
Segundo o site de notícias sobre jornalismo Press Gazette, o Daily Mail continua a ter a maior circulação média de edições impressas aos sábados (1.046.644), e a maior circulação nédia durante a semana (531.607).
O conglomerado foi muito além dos linotipos móveis do primeiro Lord Rothermere da dinastia. Em sua apresentação institucional, afirma ser o maior editor de notícias no TikTok, com mais de 35 milhões de seguidores no total e mais de 50 bilhões de visualizações.
A receita anual é de £ 1 bilhão, proveniente de jornais e de atividades como eventos, portais de informações sobre o mercado imobiliário e uma aceleradora de start-ups.
O que pode acontecer com o Daily Telegraph?
A julgar pelas primeiras declarações, Lord Rothermere parece estar de acordo com a linha editorial panfletária do Daily Telegraph.
Ele manifestou admiração pelo atual editor-chefe, Chris Evans, e disse que o manterá no cargo. Mas isso não significa que mudanças não possam acontecer.
Um dos objetivos antecipados por ele é investir para tornar o Daily Telegraph uma marca de mídia global, como já acontece com o The Guardian, que tem uma audiência significativa nos EUA.
Além de afastar o fantasma do controle estrangeiro, a consolidação vai gerar economias de escala e talvez redundâncias em atividades operacionais, e ainda tem que passar por autoridades regulatórias: o Ofcom (agência de controle da mídia), e o Autoridade da Concorrência e dos Mercados (CMA).
O problema maior é a concentração de audiência. Mas dificilmente isso pode representar um bloqueio completo. Talvez a imposição de algumas condições, como a venda de outros títulos, segundo especulam especialistas.
O golpe de mestre de Rothermere e o futuro político do país
A vitória de Lord Rothermere na compra do Daily Telegraph está sendo comentada como um lance genial de estratégia, devido à paciente espera pelo melhor momento para fazer a oferta final.
Mas quem pode não estar achando genial é Keir Starmer. O primeiro-ministro despencou em popularidade, e a imprensa aposta em sua queda iminente.
Já começam a surgir notícias sobre possíveis sucessores para a liderança do partido Trabalhista, com a remoção de Starmer e sua substituição por alguém capaz de levar o barco até as eleições gerais de maio com reais chances de vitória.
Farage, uma figura exótica e extremista, passou a ser levado a sério pelos eleitores, sobretudo do interior e do norte do país. Segundo o Instituto YouGov, ele tem 27% das intenções de voto, contra 19% dos Trabalhistas e 17% dos Conservadores, estes últimos afundados sob a liderança de Kemi Badenoch.
Quando ele foi eleito para o Parlamento, depois de ter desistido de trabalhar na campanha de Donald Trump à reeleição (como tinha feito na primeira candidatura) ao ver uma oportunidade de sair do ostracismo e ganhar espaço político, o Daily Telegraph comemorou e deu uma capa a ele, destacando sua volta para “liderar a revolta”.
Um Daily Telegraph fortalecido, sem precisar ser tão incendiário como seu agora co-irmão Daily Mail, falando com classes altas em tom de voz mais equilibrado, terá um peso político importante – e possivelmente decisivo.
Resta saber se em apoio a Nigel Farage, aliado de Trump que aparece fumando charuto e promovendo ódio a imigrantes, ou ao partido Conservador, que pode dar a volta por cima da atual impopularidade e retomar o governo perdido para os Trabalhistas em 2024.
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