Mais de sete em cada dez das jornalistas ouvidas em um estudo apresentado durante a ConferĂȘncia do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que estĂĄ sendo realizada pela Unesco na NamĂbia, disseram ter sofrido violĂȘncia online. A pesquisa The Chilling: global trends in online violence against women journalists, que entrevistou 901 profissionais de 125 paĂses, mostra que a violĂȘncia online tornou-se a mais importante forma de intimidar o trabalho da imprensa, principalmente das mulheres jornalistas.
As entrevistadas revelaram que o abuso online nĂŁo se limita ao discurso de Ăłdio, mas tambĂ©m a ameaças de violĂȘncia sexual ou fĂsica, muitas das quais acabam se tornando realidade. Uma em cada cinco das jornalistas ouvidas disse ter sofrido ataques ou abusos no Ăąmbito off-line decorrentes das ameaças online.
O Facebook foi apontado como a rede mais insegura para as mulheres, bem Ă frente do Twitter, embora o percentual de uso das duas plataformas por jornalistas seja semelhante.
Para se protegerem, as vĂtimas recorrem Ă autocensura nas mĂdias sociais e na prĂĄtica do jornalismo. A minoria, apenas 25% do total, buscou apoio de seus empregadores. A pesquisa apurou que boa parte das que buscaram ajuda nĂŁo receberam, e algumas chegaram a ser perguntadas sobre o que teriam feito para provocar a situação.
O resultado Ă© que uma em cada dez das entrevistadas abandonou a função, o emprego ou o prĂłprio jornalismo em decorrĂȘncia da violĂȘncia online sofrida, prejudicando nĂŁo apenas suas carreiras, mas o poder do jornalismo crĂtico e a diversidade de gĂȘnero da mĂdia jornalĂstica.
As conclusÔes da pesquisa, encomendada pela Unesco e realizada pelo International Center for Journalists (ICFJ), são preocupantes. Elas estão detalhadas abaixo e fizeram com que o secretårio-geral da ONU, António Guterres, se manifestasse:
âNĂŁo deveria haver espaço para misoginia e violĂȘncia no jornalismo. As plataformas de mĂdias sociais e os governos tĂȘm o dever de proteger as mulheres jornalistas da violĂȘncia onlineâ.
PolĂticos sĂŁo os maiores abusadores entre os autores conhecidos
A maior parcela (57%) dos ataques citados pelas vĂtimas partiu de pessoas anĂŽnimas ou desconhecidas, o que ressalta a importĂąncia da discussĂŁo sobre o fim do anonimato nas redes sociais.
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Entre os ataques de fontes conhecidas, o maior percentual partiu da classe polĂtica. Somados, os polĂticos (13%), funcionĂĄrios do governo (14%) e membros de partidos polĂticos (10%) foram citados por mais de um terço (37%) das respondentes.
Os lĂderes polĂticos foram identificados nĂŁo apenas como autores, mas tambĂ©m entre os maiores instigadores de campanhas, amplificadas pela mĂdia partidĂĄria, tropas cibernĂ©ticas a serviço de governos e por seguidores nas mĂdias sociais.
Quatro em cada dez das entrevistas (41%) revelaram terem sido alvo de ataques online que pareciam ligados a campanhas de desinformação orquestradas. Essa tendĂȘncia foi vinculada a reportagens sobre temas como extrema direita, redes de extremismo e teorias de conspiração.
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Jornalistas misĂłginos tambĂ©m sĂŁo instrumentalizados para amplificar e alimentar ataques. Duas em cada dez das entrevistadas (22%) disseram ter sido vĂtimas de ataques de outros jornalistas, a maioria partindo de colegas da prĂłpria redação (14%), mas tambĂ©m de veĂculos concorrentes (8%).
As fontes e contatos com quem as jornalistas trabalharam foram citados como autores dos ataques por 15% das respondentes.
Estudo cita agressĂŁo de Bolsonaro a PatrĂcia Campos Mello
Os impactos da polĂtica populista foram associados ao discurso misĂłgino e Ă demonização de jornalistas em todas as regiĂ”es pesquisadas, refletindo-se no aumento de ataques de motivação polĂtica a jornalistas.
O Brasil foi citado entre os paĂses onde aconteceram casos mais graves desse tipo de ataque, junto com Estados Unidos, Reino Unido, Ăfrica do Sul, Filipinas e LĂbano. O caso brasileiro destacado foi o ataque do presidente brasileiro Ă jornalista PatrĂcia Campos Mello, assim descrito no estudo:
âNo final de 2018, PatrĂcia Campos Mello começou a publicar uma sĂ©rie de artigos investigando denĂșncias de desinformação no contexto das eleiçÔes nacionais. Os ataques orquestrados contra ela envolveram um volume de desinformação significativo â incluindo o de que ela teria trocado favores sexuais por informação. A internet ficou cheia de pornografia com imagens falsificadas dela, vĂdeos deep fake, memes virais e ameaças de estupro.
“‘O tipo de violĂȘncia online era muito agressivo, era mais uma fake news. Havia milhares de memes de uma mulher nua, ou sĂł de sutiĂŁ e calcinha, com meu rosto… milhares de memes com diferentes posiçÔes sexuais, filmes, vĂdeos me tachando deâjornalista prostitutaâ, e ameaças dizendo ‘vocĂȘ deveria ser estuprada’.â
Em resposta, Campos Mello processou o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e seu filho deputado por danos morais, acusando-os de declarar que ela teria oferecido sexo em troca de informaçÔes exclusivas. Ela ganhou o processo. Um tribunal brasileiro condenou o presidente e seu filho no inĂcio de 2021.â
Mais de sete em cada dez das jornalistas ouvidas sofreram violĂȘncia online
Mais de sete em cada dez entrevistadas (73%) disseram que jĂĄ foram vĂtimas de violĂȘncia online durante o trabalho. Ă certo que este Ă© um problema verificado hĂĄ muitos anos, mas o estudo mostra que os ataques se agravaram no contexto da Covid-19.
A pandemia mudou as condiçÔes de trabalho, tornando as jornalistas ainda mais dependentes de serviços de comunicação digital e das mĂdias sociais. E a desinformação decorrente aumentou a toxicidade das comunidades online, tornando as jornalistas “alvos fĂĄceis”, conforme alertou a UniĂŁo Nacional de Jornalistas do Reino Unido, ouvida na pesquisa, que vai virar um livro publicado pela Unesco.
Situação nunca esteve pior
Os nĂșmeros mostram o crescimento do problema. Em 2014, era de 23% o percentual de jornalistas vĂtimas de intimidação ou abuso online em função do trabalho, de acordo com 921 entrevistas conduzidas pela International Womenâs Media Foundation (IWMF), em parceria com o International News Safety Institute (INSI).
O nĂșmero aumentou para 44% em pesquisa de 2017 da Federação Internacional de Jornalistas com 400 mulheres, pulou no ano seguinte para 63% em novo estudo da IWMF com 597 mulheres e chegou aos 73% neste estudo da Unesco-ICFJ.
Embora as metodologias das pesquisas nĂŁo possam ser diretamente comparadas, os pesquisadores explicam que elas sugerem que nunca as jornalistas estiveram tĂŁo expostas Ă violĂȘncia online.
Uma em cada cinco viu a ameaça tornar-se realidade
Revelando um cenĂĄrio ainda mais grave, uma em cada cinco das entrevistadas (20%) revelou que a violĂȘncia online sofrida acabou se transformando em ataques ou abusos no mundo off-line.
Ameaças estendem-se a pessoas prĂłximas, incluindo crianças e bebĂȘs
Uma em cada quatro (25%) das entrevistadas disse ter sofrido ameaças de violĂȘncia fĂsica, e uma em cada cinco (18%) foi ameaçada com violĂȘncia sexual.
Em alguns casos, as ameaças nĂŁo se limitaram Ă s jornalistas: 13% das entrevistadas disseram ter recebido ameaças de violĂȘncia contra as pessoas prĂłximas a elas, incluindo crianças e bebĂȘs.
ViolĂȘncia contra mulheres jornalistas Ă© agravada se for negra ou lĂ©sbica
Racismo, preconceito religioso, sectarismo, homofobia e transfobia se cruzam com misoginia e sexismo para agravar ainda mais a violĂȘncia contra as jornalistas.
Mulheres negras sofrem significativamente mais abuso online do que as brancas. A orientação sexual tambĂ©m influi: mulheres lĂ©sbicas e bissexuais sĂŁo mais visadas do que as heterossexuais. Da mesma forma, a origem faz aumentar a violĂȘncia online: indĂgenas, judias e ĂĄrabes tiveram taxas mais altas de impactos sofridos.
Uma em cada dez precisou de ajuda médica
Os impactos na saĂșde mental foram o dano mais frequentemente causado (26%) pelos ataques online entre as jornalistas ouvidas.
Os danos psicolĂłgicos fizeram com que quase duas em cada dez entrevistadas (17%) passassem a conviver com uma sensação permanente de insegurança fĂsica.
Vårias das entrevistadas estavam sofrendo de transtorno de estresse pós-traumåtico (TEPT) e uma em cada dez (12%) das respondentes teve que recorrer a ajuda médica especializada.
Faltas ao trabalho e danos à reputação profissional
A violĂȘncia online sofrida fez com que as entrevistadas faltassem ao trabalho para se recuperar do abuso (11%) ou por medo que a ameaça se tornasse realidade (4%).
Uma em cada dez (10%) relatou que o abuso de que foi vĂtima acarretou danos Ă sua reputação profissional ou ao prĂłprio emprego.
Abandono da função, do emprego e até do jornalismo
O estudo revela que a violĂȘncia online sobre as jornalistas impacta atĂ© mesmo a diversidade de gĂȘnero da mĂdia jornalĂstica, na medida em que, por causa dela, uma em cada dez (9%) das entrevistadas preferiu abrir mĂŁo de sua função (3%), de seu emprego (4%) ou atĂ© mesmo de sua carreira no jornalismo (2%).
VĂtimas buscam se proteger tornando-se menos visĂveis
Outro impacto cruel da violĂȘncia online Ă© o de fazer com que a vĂtima queira se tornar menos visĂvel. Uma em cada dez (9%) pediu para nĂŁo assinar matĂ©rias ou para ser retirada do ar.
Um percentual ainda maior (36%) buscou a invisibilidade nas redes sociais, optando pela retirada temporĂĄria (17%) ou permanente (11%) de certas comunidades online ou passando a usar pseudĂŽnimos (8%) nas plataformas de mĂdias sociais.
Como garantia adicional, 13% revelaram terem tomado medidas para aumentar sua segurança.
Autocensura é a principal reação e representa a vitória dos abusadores
As vĂtimas disseram que a resposta mais frequente Ă violĂȘncia online sofrida foi a prĂłpria autocensura nas redes (30%), seguida pela supressĂŁo de qualquer interação apĂłs a publicação de posts (20%). Um percentual de 18% disse que passou a evitar qualquer envolvimento com o pĂșblico online.
Essa autocensura tambĂ©m estendeu-se Ă s prĂĄticas de reportagem das vĂtimas, com 15% afastando-se de certas fontes e contatos e 10% evitando determinadas notĂcias e artigos.
O estudo reconhece que essas medidas, embora naturais para preservar a segurança das vĂtimas, representam ao mesmo tempo uma vitĂłria das tĂĄticas de violĂȘncia online, que buscam justamente silenciar jornalistas, refrear a reportagem crĂtica e abafar a busca jornalĂstica pela verdade.
QuestĂ”es de gĂȘnero e polĂtica sĂŁo os principais gatilhos dos abusos
Os temas que mais desencadearam ataques online contra as jornalistas que sofreram abusos foram as questĂ”es ligadas a gĂȘnero (47%), polĂtica e eleiçÔes (44%), e direitos humanos e polĂticas sociais (31%).
As questĂ”es de gĂȘnero mais mencionadas foram o feminismo, violĂȘncia entre homens e mulheres, direitos de transgĂȘneros e direitos reprodutivos, incluindo aborto, destacando a misoginia como o principal fator da violĂȘncia online.
O segundo tema mais citado como desencadeador de abusos foi âpolĂtica e eleiçÔesâ (44%), o que aponta para o papel dos ataques de polĂticos Ă imprensa no agravamento das ameaças Ă segurança.
Os direitos humanos e as questĂ”es de polĂtica aparecem em seguida (31%), enquanto as questĂ”es de imigração foram apontadas por 17% das entrevistadas.
Reportagens sobre desinformação representam um gatilho emergente para ataques online, apontado por 16% das jornalistas, jå superando os ataques gerados em reação a matérias investigativas
Plataformas de mĂdias sociais, as principais facilitadoras dos abusos
O estudo aponta as empresas de mĂdia social como as principais facilitadoras da violĂȘncia online contra as jornalistas. Os pesquisadores afirmam que, apesar dos esforços incipientes e compromissos declarados para melhorar a segurança das jornalistas em suas plataformas, elas estĂŁo falhando em responder rĂĄpida e eficazmente Ă crise.
Os pesquisadores criticam a tentativa das gigantes digitais de usar o argumento da liberdade de expressĂŁo como escudo para nĂŁo assumir a responsabilidade pelo conteĂșdo ofensivo em seus sites.
O estudo ressalta tambĂ©m a necessidade de uma coordenação entre essas empresas para uma resposta mais apropriada Ă s campanhas orquestradas, que utilizam vĂĄrias plataformas em ataques em rede â exigindo portanto respostas coordenadas em rede de todas elas.
O estudo culpa falhas de design tĂ©cnico e dos modelos de negĂłcios pela violĂȘncia online nas plataformas digitais. AlĂ©m disso, diz que as empresas de mĂdia social carecem de soluçÔes sensĂveis ao gĂȘnero e com foco no ser humano. HĂĄ tambĂ©m houve poucas tentativas de responsabilizar as empresas de mĂdia social ou fazer responsabilizĂĄ-las por meio de reparação legal ou formas de regulamentação.
Segundo os pesquisadores, apesar da capacidade de fazer mais, as gigantes digitais nĂŁo disponibilizam unidades de resposta rĂĄpida e nem atendimento em todos os idiomas utilizados em suas plataformas, o que poderia facilitar o apoio Ă s vĂtimas.
Facebook, o principal palco da violĂȘncia online
O Facebook foi a plataforma que mais recebeu relatos (39%) das jornalistas vĂtimas de abuso online, bem Ă frente do Twitter (26%), embora essas plataformas, as duas mais utilizadas para trabalho jornalĂstico pelas entrevistadas, tenham sido apontadas com um percentual de uso semelhante (77% no caso do Facebook e 74% no do Twitter).
Como reflexo dessa desproporcionalidade, o Facebook foi apontado pelas entrevistadas como a plataforma mais insegura para as jornalistas, com quase o dobro de indicaçÔes atribuĂdas ao Twitter e o triplo de Instagram, Youtube e WhatsApp, que completam as cinco mais utilizadas para trabalho pelas entrevistadas.
Minoria recebe apoio dos veĂculos em que trabalham
Embora as gigantes tecnolĂłgicas sejam apontadas como as principais facilitadoras da violĂȘncia online contra as jornalistas, o estudo responsabiliza tambĂ©m as organizaçÔes de notĂcias, pelo modelo de excessiva dependĂȘncia das plataformas digitais e por nĂŁo garantirem nesse cenĂĄrio um ambiente seguro para o exercĂcio da profissĂŁo.
Apesar de reconhecer o progresso feito por muitos empregadores nos Ășltimos cinco anos (principalmente nas seçÔes de comentĂĄrios de seus sites), o estudo revela que apenas 25% das jornalistas entrevistadas relataram a violĂȘncia online sofrida aos veĂculos em que trabalham.
E o retorno nĂŁo foi dos melhores. TrĂȘs em cada quatro das que buscaram apoio disseram nĂŁo ter recebido nenhuma resposta (10%) ou apenas conselhos (9%), como os de âcriar uma carapaçaâ ou âendurecerâ.
Mas foi narrado um cenĂĄrio ainda pior. Cerca de uma em cada dez das que buscaram apoio disseram que foram questionadas sobre o que tinham feito para provocar o ataque.
Os pesquisadores ressaltam que cada vez mais, e de forma muito problemĂĄtica, as organizaçÔes jornalĂsticas respondem ao problema policiando o discurso dos jornalistas, com a introdução de polĂticas de uso de mĂdia social cada vez mais restritivas e punitivas, que os desencorajam a seenvolverem em comentĂĄrios pĂșblicos sobre “questĂ”es polĂȘmicas”.
Em alguns casos, aponta o estudo, as jornalistas sĂŁo ativamente desencorajadas a falar sobre suas experiĂȘncias de violĂȘncia online ou envolvimento com os agressores. Nos piores casos, jornalistas acabaram suspensas ou demitidas como punição pela exposição da marca do veĂculo em decorrĂȘncia de grandes campanhas de ataque.
PolĂcia e Justiça tambĂ©m nĂŁo ajudam
A atuação dos Estados também é criticada no estudo, por se omitirem na proteção dos jornalistas por meio dos devidos aprimoramentos da legislação e das regulamentaçÔes, e pela performance inadequada das instùncias de aplicação da lei.
Apenas 11% das jornalistas entrevistadas relataram para a polĂcia os casos de violĂȘncia online que sofreram.
E um percentual menor ainda (8%) das jornalistas entrevistadas entraram com açÔes judiciais, destacando a relutùncia em buscar remédio judicial em razão de diversos impedimentos.
Os pesquisadores afirmam que esse comportamento, identificĂĄvel nĂŁo apenas no contexto jurĂdico e nas instĂąncias de aplicação da lei, como tambĂ©m nas organizaçÔes de notĂcias e nas empresas de mĂdias sociais, reflete a tendĂȘncia de responsabilizar as vĂtimas pela violĂȘncia online sofrida, da mesma forma como acontece com as que sĂŁo alvo de agressĂ”es sexuais e de violĂȘncia domĂ©stica.
O estudo completo pode ser visto aqui.
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