Estudo aponta que não só na cobertura da Covid-19, mas também na política. As candidatas mulheres recebem uma atenção menor e mais distorcida da imprensa. O caso da primeira-ministra da Finlândia é o exemplo mais recente
As duas fotos são de políticos da Finlândia e foram publicadas na semana passada.
De um lado, a mais jovem primeira-ministra do mundo, Sanna Marin, vestindo um blazer preto decotado, num post do Instagram da revista de moda Trendi.
Do outro, o eurodeputado Teuvo Hakkarainen, do partido de extrema direita Verdadeiros Finlandeses, que se exibe em suas redes sociais de sunga e com um boné com a mensagem “Make America Great Again”.
Qual delas causou a maior polêmica?
Não houve reação à sunga do eurodeputado. Já a foto da primeira-ministra causou um escândalo no país, que reverberou em matérias pelo mundo, talvez com sua melhor descrição pelo site da Rádio França Internacional, que fez um histórico do caso apontando o que muita gente já sabe: não apenas na ciência, como mostramos neste artigo do MediaTalks, como na política, o tratamento da imprensa (e da sociedade) não é o mesmo para homens e mulheres.
Isso foi evidenciado por uma pesquisa que analisou mais de 750 mil reportagens sobre 25 mil políticos. E comprovou que, assim como na cobertura da Covid-19, também no campo político a cobertura da imprensa tem sido mais favorável aos homens do que às mulheres em sistemas eleitorais proporcionais.
Publicada no Journal of Communication da International Communications Association em fevereiro, foi feita pelas pesquisadoras Daphne Joanna Van der Pas, do Departamento de cCiência aPolítica da Universidade de Amsterdã, e Loes Aaldering, do Departamento de Ciências da Comunicação da universidade austríaca de Wien.
Elas concluíram que o preconceito fez com que os jornalistas tratassem as mulheres políticas de forma tendenciosa. As reportagens sobre as candidatas mulheres foram mais focadas na aparência e vida pessoal do que as dos homensl, além de fazeren uma avaliação mais negativa das chances de vitória delas.
Também foram retratadas com mais frequência com estereótipos de gênero. Seu comportamento combativo foi mais enfatizado e seu gênero, mais frequentemente mencionado.
Foram avaliados 90 estudos de caso em língua inglesa realizados nos Estados Unidos (44), Canadá (16), Europa (23) e sete de Chile e Venezuela. Na média, as mulheres receberam 17% menos atenção da imprensa, obtendo menos espaço proporcional na cobertura de TV do que na de jornais.
O estudo levanta a hipótese de que em sistemas eleitorais proporcionais, com contextos eleitorais dominados por partidos, os homens têm mais predominância dentro das agremiações em postos-chave que lhes dão mais visibilidade junto à imprensa. Os resultados não apontaram essa desproporção nos sistemas eleitorais majoritários analisados.
As autoras defendem que “o viés da mídia provavelmente contribui para a sub-representação quase universal das mulheres na política”, embora admitam que os dados analisados estejam mais focados nos Estados Unidos e em países com língua inglesa.
Elas ressaltam que excluíram da análise os estudos com abordagem puramente qualitativa, mas que estes reservam contribuições valiosas, como, por exemplo, o enquadramento de Hillary Clinton como histérica demais para liderar os Estados Unidos na campanha de 2016 e as diferenças que revelam como não apenas o gênero, mas também a etnia estão relacionados ao preconceito da mídia na cobertura política.
Por fim, as pesquisadoras lançam a pergunta:
“Se as diferenças na cobertura política realmente decorrem do viés jornalístico, como exatamente ocorre esse tratamento diferenciado?”.
Elas recomendam a realização de novas pesquisas para melhor compreender os mecanismos que levam ao preconceito, para que daí se selecionem soluções eficazes.
Veja a pesquisa completa aqui.
O caso da Finlândia, um exemplo prático da tese
Depois que as fotos foram publicadas pela revista Trendi, Sanna Marin, primeira-ministra finlandesa, foi acusada por internautas de “indecência” e de deixar suas funções para “brincar de modelo”, em plena crise de Covid-19.
A Rádio França internacional observou que a chuva de críticas aconteceu mesmo com o país sendo um dos menos afetados pela Covid-19 na Europa (menos de 500 mortos) e tendo sido apontado pelo segundo ano consecutivo como o país mais feliz do mundo em relatório anual da ONU.
Ironicamente, na entrevista à revista Trendi ilustrada pela foto, a premiê lamenta que as escolhas pessoais das mulheres sejam sempre assunto de “debates e análises”. Ela também fala da obsessão da sociedade em torno da aparência física das mulheres.
Felizmente, nem tudo foram críticas
No Facebook, Ville Niinistö, ex-líder do Partido Verde, denunciou os “dois pesos eduas medidas”, que, segundo ele, “limitam o exercício do poder de uma mulher, dizendo a ela o que é apropriado ou não fazer”.
Desde o fim de semana, centenas de finlandesas e finlandeses publicam fotos exibindo decotes, junto da hashtag #imwithsanna (estou com Sanna).
O exemplo da líder
Sanna enfrenta uma dose dupla de preconceitos, por ser mulher e jovem. Mas vem fazendo a sua parte para mudar esse estado de coisas. Antes da polêmica, 7em 7/10, ela deu um exemplo para o mundo ao participar da campanha mundial Girls Takeover e transferir simbolicamente por um dia a chefia do Executivo à estudante Aava Murto, de 16 anos. A iniciativa é promovida pela ONG Plan Internacional para marcar o Dia Internacional da Menina, estabelecido pela ONU e comemorado em 11 de outubro.
De quebra, no Dia Internacional da Menina a primeira-ministra publicou em seu Instagram uma foto quando criança.
E escreveu:
“Pensava que tudo era possível porque minha mãe me disse que eu podia ser o que eu quisesse. É preciso encorajar as garotas, porque elas mudam o mundo”.