Na tarde chuvosa de quarta-feira (21/10), em Londres, manifestantes reuniram-se diante da embaixada da Nigéria, do Parlamento e da sede do governo britânico entoando o slogam “fraternity forever” e cobrando ação contra a violência policial no país africano. Um desdobramento do que acontece a mais de quatro mil quilômetros dali, em Lagos e em outras cidades nigerianas, onde cidadãos protestam há duas semanas contra a polícia, a pobreza e a corrupção.
Atos parecidos ocorreram recentemente em Hong Kong, Bielorrússia e Tailândia, que viram nos últimos meses − ou ainda estão vendo − a população sair às ruas para contestar o governo. Em todos, os regimes autoritários já estão há muito tempo no poder, sem serem incomodados pelo povo nem desafiados pela imprensa.
A manifestação foi transmitida ao vivo por canais como o da agência de notícias Ruptly no YouTube e por muitos cidadãos lá presentes em seus canais em redes sociais. Possibilidade inimaginável antes do advento das mídias digitais.
O que mudou? Até pouco tempo atrás, era uma outra época, sem redes sociais para mobilizar a população, sobretudo jovens, a contestar autoritarismo e más práticas da administração pública. Viva as redes sociais, que deram aos que vivem em nações onde a imprensa não é livre o caminho para se informar e tomar consciência!
Corta para a França, onde o lema Liberté, Egalité, Fraternité cunhado na Revolução Francesa inspira até hoje defensores da democracia. Na última sexta-feira (16/10), um professor sofreu no país um ataque selvagem perpetrado por um maníaco incitado por uma campanha em redes sociais, por abordar na aula o tema da livre expressão.
Este vídeo da emissora France 24 mostrando a homenagem a Samuel Paty causa tristeza e indignação.
O paradoxo entre o que as redes sociais proporcionam e os riscos que oferecem demonstra que é preciso ponderação no debate sobre regulação das plataformas digitais para controlar o discurso de ódio que vitimou o professor francês e tantos outros. O problema é que, se não forem bem pensadas, planejadas e executadas, iniciativas louváveis podem agravar ainda mais as ameaças à liberdade de expressão, que só fazem crescer pelo mundo, com o empurrãozinho providencial da pandemia.
O Relatório da Article 19
A escalada de ameaças foi registrada pela organização não-governamental Article 19, baseada em Londres, que acaba de lançar o documento Global Expression Report 2019/2020.Nas palavras da diretora-executiva Quinn McKew, os resultados são preocupantes:
“Mais da metade dos cidadãos do mundo (51%) vive neste momento uma crise de liberdade de expressão”.
McKew aponta que a deterioração do direito de falar e saber gerou uma atmosfera de medo e desconfiança, com jornalistas e ativistas em todo o mundo sob risco de perseguição, detenção arbitrária, tortura e assassinato.
Embora o relatório se concentre no estado da liberdade de expressão em 2019, a entidade registrou um declínio ainda maior em 2020, com a disseminação de desinformação online e offline e governos usando a pandemia como pretexto para restringir ainda mais a expressão na internet, na imprensa e nas ruas. O trabalho ressalta que o vírus emergiu em um cenário já marcado por censura e difamação de dissidentes e opositores políticos – o pior cenário de expressão global da década
“Vozes têm poder. Maus atores sociais sabem disso e há anos desgastam a capacidade de as pessoas usarem as suas vozes. Agora, diante de uma pandemia global, vemos como o abuso sistemático de quem está no poder levou a uma quebra de confiança entre o cidadão e o Estado”.
A metodologia
A métrica GxR adotada pela organização reflete não apenas os direitos de jornalistas, mídia e ativistas, mas o espaço existente para indivíduos e comunidades para acessar informações e se comunicar livremente.
O trabalho analisou 25 indicadores em 161 países, para criar uma pontuação de liberdade de expressão para cada país em uma escala de 1 a 100. Com base nela, os países foram classificaddos em categorias. O relatório mostra que 3,9 bilhões de pessoas vivem em contextos onde os direitos de falar, saber e ser ouvido são violados rotineiramente.
Os países com as maiores populações − e normalmente, a maior influência − tendem a apresentar declínio acentuado ou já estão em crise. China, Índia, Turquia, Rússia, Bangladesh e Irã foram classificados como “em crise”. Nações como Estados Unidos, Brasil, Hungria e Tanzânia apresentam quedas preocupantes, segundo a Article 19.
Sobre o Brasil, a entidade observa que o País ainda não chegou à categoria de crise, mas experimentou um declínio acentuado e acelerado.
O documento registra que desde 2010, 43 jornalistas foram mortos no Brasil, e que ataques se intensificaram depois da campanha presidencial de 2018. Observa a influência sobre a região, por ser a maior economia da América Latina e segunda maior população das Américas. Recorda as tentativas recentes de controle do espaço cívico e limitação de acesso a documentos oficiais. E ainda as violações contra jornalistas – citando o caso de Patrícia Campos Mello – e também contra blogueiros e mídias independentes. Conclui observando que na pandemia a situação piorou.
Países com quedas significativas na pontuação GxR em períodos de um, cinco e 10 anos
Mas o relatório também deixa claro que há espaço para otimismo, lembrando que a resistência à repressão está aumentando. Armênia, Gâmbia, Sri Lanka e Tunísia são os quatro países que alcançaram as maiores conquistas democráticas.
Países com avanços significativos na pontuação GxR em períodos de um, cinco e dez anos
Nações europeias são a maioria na lista das 10 onde a população desfruta de mais liberdade, incluindo todos os países nórdicos. O único país de fora da região é o Canadá. Já na lista dos piores no ranking, pouca surpresa. A Coréia do Norte lidera, com pontuação zero.
“Os estados têm escolha. Eles podem perceber que sua capacidade de governar é baseada em uma cidadania livre e informada agindo como parceiros na tomada de decisões, ou podem seguir o caminho instável do autoritarismo crescente”, diz Quinn McKew.
O papel da mídia: crítica e plural o suficiente?
A Article 19 ressalta o valor da imprensa livre, pluralista e diversificada para cobrar ações em benefício da sociedade e ajudar as pessoas a se informarem e se engajarem, funcionando como um instrumento para a liberdade de expressão. O estudo mediu percepções sobre a imprensa na última década, comparando-as com a evolução do índice de liberdade.
Um dos indicadores foi se os principais jornais e TVs criticam rotineiramente os governos de seus países. Houve declínio ao longo da década, mas relativa estabilidade nos últimos três anos, sem acompanhar a queda mais acentuada na liberdade de expressão.
A situação mudou quando a pergunta foi sobre se a mídia reflete uma ampla gama de visões políticas. A queda é contínua ao longo dos anos desde 2012, acompanhando o índice de liberdade de expressão medido pela entidade.
Controle sobre as redes sociais
Um dos capítulos do relatório trata da internet e das mídias sociais. Aponta para o que classifica como “lado sombrio da liberdade digital”, defendendo a tese de que embora a internet tenha sido aclamada por democratizar a informação, os dados contam uma história diferente.
“O número de pontos de vista online aumentou, mas também aumentou um clima tóxico de polarização. E a desinformação explodiu.
A Article 19 afirma que “concentração de poder e a falta de responsabilidade permitem às plataformas digitais globais censurarem as informações online sem respeitar os direitos humanos”.
“As plataformas de mídias sociais estão começando a se envolver, mas há um longo caminho a percorrer e muito poder a ser redistribuído a fim de assegurar os direitos humanos dos usuários”.
Jornalistas e ativistas sob risco
Segundo a Article 19, em 2019, 57 jornalistas foram mortos no mundo, com uma taxa de impunidade de cerca de 90%. Pelo menos 250 deles estavam atrás das grades no final do ano, com o assédio dos serviços de segurança piorando, medidas de vigilância drásticas sendo tomadas e apagões da internet resultando em restrições gerais à capacidade de milhões de acessar informações que salvam vidas.
- 2019 viu um aumento de 51% no número de manifestações em comparação a 2018, com aumento da atividade em 71% dos países.
- Houve aumento de 106% nas mortes durante as manifestações, com tiros disparados contra os manifestantes e outras medidas de controle de tumulto, incluindo os chamados métodos “menos que letais”. O exemplo mais dramático está no Chile, onde quase 300 pessoas ficaram cegas.
- No final de 2019, 250 jornalistas permaneciam presos, 98% dos quais são profissionais locais. Os piores carcereiros são China, Turquia, Arábia Saudita e Egito, seguidos por Eritreia, Vietnã e Irã.
- 304 defensores dos direitos humanos foram mortos em 2019, dos quais 40% trabalhavam na terra, eram integrantes de povos indígenas ou ativistas ambientais.
- Houve 213 paralisações de internet em 33 países em 2019.
Estatísticas por região, extraídas do relatório da Article 19
Estados Unidos
- A abordagem dos Estados Unidos em relação à transparência diminuiu na última parte do primeiro mandato do presidente Trump. Houve um aumento na resposta negativa a pedidos de informação. E os governos locais e estaduais restringiram o acesso da imprensa a eventos públicos .
- O Departamento de Justiça continuou a perseguir as acusações contra o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, nos termos da Lei de Espionagem e buscar sua extradição do Reino Unido.
América Latina
- 28 jornalistas foram mortos em 2019 em toda a América Latina.
- Brasil: O presidente Bolsonaro fez pessoalmente dez ataques a jornalistas por mês em 2019, diz a Article 19.
Europa e Ásia Central
- O Conselho da Europa registrou 142 ameaças graves à liberdade da mídia em 2019. Na região da Europa e da Ásia Central, havia pelo menos 105 jornalistas atrás das grades no final de 2019, 91 deles na Turquia.
- 2019 testemunhou o aumento da violência contra jornalistas em toda a Europa, incluindo o assassinato de dois jornalistas − Lyra McKee, na Irlanda do Norte, e Vadim Komorov, na Ucrânia. Daphne Caruana Galizia, jornalista assassinada em Malta, tinha 48 ações civis por difamação contra ela no momento de sua morte.
Ásia e Pacífico
- Três em cada quatro pessoas na Ásia e no Pacífico vivem em um ambiente de crise de liberdade de expressão. É a maior proporção de qualquer região do mundo.
- O governo da Índia é o que mais abusa de interrupções da Internet. Mais de 50% de todas as paralisações no mundo foram impostas na Índia.
- 28% dos jornalistas tiveram problemas legais que afetam seu local de trabalho. Maria Ressa, editora e fundadora do veículo Rappler, foi presa e acusada nas Filipinas em fevereiro, enfrentando vários casos de difamação cibernética nas tentativas de intimidar a imprensa e outros críticos do governo Duterte. Ressa foi considerada culpada em junho de 2020, condenada a seis anos de prisão (recurso pendente).
África
- Assassinatos foram cometidos na Nigéria, Quênia e Camarões, entre outros. Jornalistas que cobriam protestos sofreram ferimentos graves em Senegal, Nigéria e Uganda.
- A Etiópia viu a violência contra manifestantes em 2020 muitas vezes cruzar com tensão étnica: mais de 150 foram mortos em meio à violência das forças de segurança .
- Zimbábue: Poucos dias antes dos protestos programados, seis ativistas foram sequestrados de suas casas por homens mascarados, interrogados e torturados e deixados em locais remotos.
Oriente Médio e Norte da África
- Assassinatos seletivos ocorreram em Iraque, Líbia, Sudão, Síria e Iêmen, enquanto defensores morreram em Argélia, Irã, Sudão e Emirados Árabes Unidos.
- O governo da Arábia Saudita executou 37 cidadãos, a maioria manifestantes de origem xiita, em abril de 2019, usando a lei antiterrorismo. As famílias das vítimas não foram notificadas das execuções.
- A maior paralisação da internet na história do Irã ocorreu em 2019. No Egito, sites de notícias e políticos foram bloqueados em abril, e as forças de segurança continuaram a assediar os meios de comunicação ao longo de 2019.
A íntegra do relatório pode ser lida aqui.