A expressรฃo โenxugar geloโ cai como luva para ilustrar as tentativas de estancar desinformaรงรฃo e discurso de รณdio nas mรญdias sociais e na web. Assim como o coronavรญrus, ambos resistem firmes.
As plataformas digitais intensificaram mecanismos para identificar e remover conteรบdo nocivo โ ainda que aquรฉm do que muitas entidades e governos desejassem. Agรชncias de fact-checking aprimoraram ferramentas tecnolรณgicas e integraรงรฃo global.
Mas o inimigo รฉ ardiloso. No Reino Unido, que sofre com as investidas dos que contestam o distanciamento social e as vacinas contra a Covid-19, a novidade agora รฉ um falso “jornal de verdadeโ, que pode nรฃo ser o รบnico do gรชnero pelo mundo.
O The Guardian publicou em 27/11 uma matรฉria sobre o Light, criado em Manchester pelo dono de uma loja de camisetas com mensagens renegando vacinas e questionando o atentado de 11 de setembro, sugestivamente denominada Conspiracy Shirts. O currรญculo do editor nรฃo deixa dรบvidas sobre a linha editorial.
Verificadores de fatos chegaram ao “veรญculo” na caรงada ร origem de uma reportagem informando que uma agรชncia governamental americana teria declarado a inexistรชncia da Covid-19. A foto da matรฉria viralizou em vรกrios paรญses.
O Guardian classificou o jornal de falso porque sรณ foram publicadas trรชs ediรงรตes desde o lanรงamento, em setembro. Seu site nรฃo exibe notรญcias. Tem os exemplares em pdf para download, produtos ร venda e banners para compartilhar.
O objetivo parece claro: รฉ um instrumento para gerar fake news com aparรชncia de matรฉrias jornalรญsticas, cujo alcance aumenta com a distribuiรงรฃo via redes sociais. Por se assemelharem a notรญcias de verdade, tornam-se mais crรญveis. Isso foi confirmado pelo editor, que disse ao Guardian ter criado o Light para fugir da censura das plataformas.
Uma ideia antiga, de cara nova
Jornais apรณcrifos para difamar adversรกrios fazem parte do repertรณrio polรญtico brasileiro. Mas o Light รฉ outra coisa, pois de anรดnimo e artesanal como os panfletos de antigamente ele nรฃo tem nada.
A equipe รฉ identificada no expediente. Vรกrias matรฉrias sรฃo assinadas. Com cerca de 20 pรกginas, รฉ dividido em editorias (polรญtica, economia, internacional, saรบde). Tem entrevistas, anรบncios e atรฉ palavras-cruzadas. Ao final, sinaliza a que veio: oferece pรดsteres com mensagens contrรกrias ร s medidas de isolamento.
O Light tambรฉm nรฃo pode ser comparado a um jornal partidรกrio, que defende uma causa, pois o conteรบdo vai alรฉm da opiniรฃo. Ele apresenta matรฉrias supostamente factuais, sรณ que inteiramente baseadas em falsidades que beiram o grotesco.
Impressionante como gente em um paรญs de alta escolaridade propaga matรฉrias como uma que abre dizendo: โO Departamento de Defesa e a Fundaรงรฃo Bill e Melinda Gates associaram-se a uma companhia do Vale do Silรญcio, a Profusa, para implementar uma tecnologia capaz de controlar nossas mentes. O que pode parecer ficรงรฃo cientรญfica estรก acontecendo agoraโ.
Os leitores sรฃo aliciados para distribuรญrem o Light por um grupo privado com 5 mil membros no Facebook. Dรก certo. O Guardian encontrou exemplares no comรฉrcio de vรกrias cidades, incluindo cafeterias em Londres.
O Light รฉ um exemplo de como as redes sociais que banem teรณricos da conspiraรงรฃo continuam sendo usadas para propagar desinformaรงรฃo por meio de artifรญcios criativos, demonstrando que ainda tรชm muito a fazer para curar a doenรงa.
Enquanto isso, a web tambรฉm continua dando guarida aos excluรญdos e aos que fogem da moderaรงรฃo das redes. O caso mais eloquente รฉ o da rede americana Parler, que abriga pessoas e grupos banidos pelas plataformas globais. E tambรฉm aqueles que ainda estรฃo nelas e aproveitam seu alcance para levar seguidores a um novo territรณrio livre e sem controle.
Os nรบmeros ainda sรฃo pequenos se comparados aos de Twitter e Facebook. Mas, segundo o Washington Post, apรณs as eleiรงรตes americanas ela chegou a alcanรงar a lideranรงa em downloads na Apple Store. E jรก ultrapassa 10 milhรตes de usuรกrios.
Vem aรญ mais gelo para enxugar.