O ex-presidente Donald Trump usou “instintos diabólicos” para explorar uma brecha na lei dos Estados Unidos quando acusou fraude eleitoral em 2020, afirmam os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, conhecidos por revelar o caso Watergate.
A dupla lançou um novo prefácio do livro “Todos os Homens do Presidente” para o aniversário de 50 anos da investigação jornalística que revelou o escândalo político responsável pela renúncia do então presidente americano Richard Nixon, celebrado nesta sexta-feira (17).
Para eles, as ações de Trump ao questionar as eleições americanas, desencadeando na violenta invasão ao Capitólio, excederam “até mesmo a imaginação de Nixon”.
Ao acusar fraude eleitoral, Trump praticou sedição
Em 1972, os escritórios do Comitê Nacional do Partido Democrata em Washington, no complexo de edifícios Watergate, foram invadidos — daí veio o nome para o maior escândalo político do século XX.
Cinco pessoas foram presas tentando levar documentos do local, o que chamou a atenção dos dois jovens repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, que trabalhavam no Washington Post.
Ao investigarem mais a fundo, eles descobriram provas de que Nixon sabia de uma operação de espionagem para favorecê-lo nas eleições.
Os jornalistas compartilharam as informações com o FBI. Dois anos depois, o então presidente renunciou ao mandato para evitar o processo de impeachment.
No novo prefácio, publicado na íntegra pelo Post, Woodward e Bernstein contam que acreditaram “com grande convicção que nunca mais os EUA teriam um presidente que pisasse no interesse nacional e minasse a democracia por meio da audaciosa busca do seu interesse pessoal e político. E então veio Trump.”
“Donald Trump não apenas procurou destruir o sistema eleitoral por meio de falsas alegações de fraude eleitoral e intimidação pública sem precedentes de funcionários eleitorais estaduais, mas também tentou impedir a transferência pacífica de poder para seu sucessor devidamente eleito pela primeira vez na história americana.”
A dupla de jornalistas classifica esse ato como “instintos diabólicos”, pois, ultrapassando até mesmo a “imaginação de Nixon”, Trump usou uma fraqueza da lei eleitoral contra o próprio Estado.
Isso somado à incitação de seus apoiadores para invadir o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, fez de Trump “o primeiro presidente a praticar sedição” no país.
“Por definição legal, isso é claramente sedição – conduta, discurso ou organização que incita as pessoas a se rebelarem contra a autoridade governante do Estado.”
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Para Bernstein, o nível de criminalidade na Casa Branca durante o governo Trump talvez tenha excedido o de Nixon.
“Trump será o primeiro presidente insurgente dos Estados Unidos, não apenas um presidente criminoso como Nixon”, disse ele em uma entrevista ao programa Reliable Sources, da CNN EUA.
O jornalista ainda destacou outras semelhanças entre os dois ex-presidentes.
“Ambos os crimes começaram por minar o elemento mais básico da democracia: eleições livres e justas”.
Os impactos do caso Watergate no mundo
Em reportagem sobre o impacto do caso Watergate no mundo, o jornal britânico The Guardian observou que meio século depois, o sufixo “gate” virou sinônimo de escândalos dos mais diversos.
Teve o Sharpiegate, quando Donald Trump mostrou um mapa alterado com um marcador preto; Deflategate, alegações de que o time New England Patriots de Tom Brady usou bolas de futebol vazias; e o mais recente Partygate, as reuniões sociais do primeiro-ministro britânico Boris Johnson que desrespeitaram as restrições da pandemia.
O ex-conselheiro da Casa Branca que ajudou a derrubar o governo Nixon, John Dean, falou ao jornal britânico sobre os paralelos entre Trump e o antigo presidente.
“Nunca me preocupei com o país e o governo durante Watergate, mas desde o dia em que Trump foi nomeado, fiquei com um nó no estômago. Até ele sair, nunca me livrei dele”, contou Dean ao Guardian.
“Ele descobriu no final de sua presidência os enormes poderes que tinha como presidente. Ele os quer agora. Ele sabe que pode ferir seus inimigos e ajudar seus amigos.”
O ex-funcionário do governo ainda acrescentou que Nixon era um presidente inteligente, que entendia como o governo operava e quais eram realmente as alavancas do poder.
Por isso, Dean afirmou à publicação que não consegue imaginar, em uma situação semelhante, Trump cumprindo uma ordem judicial da Suprema Corte obrigando-o a entregar provas contra si mesmo.
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O que as alegações de Trump sobre fraude eleitoral ensinam aos jovens jornalistas
Bob Woodward e Carl Bernstein deram conselhos a jovens jornalistas ao falar sobre os 50 anos do caso Watergate ao “Reliable Sources” da CNN.
Woodward lembrou que quando Nixon renunciou, em 1974, a dupla de repórteres recebeu uma carta de sua então editora, Katherine Graham, do Post, que recomendava:
“Não comecem a pensar muito bem de vocês mesmos. Vocês fizeram algumas matérias muito boas. Mas eu quero dar alguns conselhos.
“Cuidado com a pomposidade demoníaca”
Para Woodward, mesmo 50 anos depois, esse ainda é um conselho que os jovens jornalistas devem prestar atenção.
Bernstein acrescentou que os repórteres atuais devem seguir a frase mote que guiou a dupla durante a investigação sobre Nixon, que é encontrar “a melhor versão possível da verdade”.
“Isso envolve perseverança. Ser um bom ouvinte, e a decisão mais importante que repórteres e editores precisam tomar: o que é notícia?”.
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Jornalista de Watergate finaliza trilogia da era Trump com detalhes sobre fraude eleitoral
No ano passado, Bob Woodward, ao lado do colega do Washington Post Robert Costa, finalizou uma trilogia da era Trump nos EUA. No livro Peril (“Perigo”, na tradução do inglês), é descrito os últimos dias do republicano como presidente da maior potência militar e política do planeta.
As primeiras páginas do livro já revelam um telefonema que tentou nada menos do que evitar uma guerra entre China e EUA em pleno ano de 2021.
O caso do general Mark Milley, que faz parte dos chefes do Estado-Maior americano, mostra o quão tensa a situação se tornou na reta final das eleições americanas, com Trump incendiando seguidores com a teoria de fraude eleitoral.
A partir de informações de 200 fontes, Woodward e Costa reconstroem episódios como o que fez o general telefonar a seu equivalente chinês para evitar o início de um conflito armado, possibilidade então real, segundo dados de inteligência.
A revelação do livro, publicada pelos principais veículos da imprensa americana obrigou o Pentágono a emitir uma nota, confirmando o fato e afirmando que “o general Mark Milley estava desempenhando as funções de seu cargo — não contornando a autoridade presidencial — quando falou com seu homólogo chinês ”.