Londres – Sob pressรฃo da Franรงa, a Uniรฃo Europeia deu nesta quarta-feira (21) sinal verde para governos instalarem softwares de vigilรขncia (spywares) em telefones e computadores de jornalistas como parte de investigaรงรตes criminais envolvendo uma ampla lista de delitos nรฃo associados a riscos de seguranรงa nacional, incluindo roubo, incรชndio intencional e pirataria.
Caso nรฃo seja derrubada, a emenda aprovada em reuniรฃo em Bruxelas farรก parte do novo regulamento de mรญdia do bloco europeu, o European Media Freedom Act (EMFA), anunciado em 2021 justamente para proteger a independรชncia e o pluralismo da mรญdia, que estรก em tramitaรงรฃo.
Na versรฃo original do projeto de lei, apresentada em setembro passado, o uso de spyware para interceptar conversas de jornalistas era admitido apenas em casos de terrorismo e ameaรงas ร seguranรงa nacional.
O que muda no projeto de lei
Na reuniรฃo desta quarta-feira, foi acrescentado um parรกgrafo ao projeto de lei ressalvando que o artigo 4.ยบ โnรฃo prejudica a responsabilidade dos Estados-Membros na salvaguarda da seguranรงa nacionalโ.
Isso significa que os paรญses que desejarem poderรฃo utilizar spyware para vigiar jornalistas como parte de investigaรงรตes criminais sem risco de desrespeitarem normas do bloco.
O acordo aprovado ontem em Bruxelas tambรฉm ampliou o escopo de crimes cujas investigaรงรตes permitirรฃo o uso de software de vigilรขncia.
Sรฃo agora 32 infraรงรตes, incluindo pirataria de mรบsica ou vรญdeo, assassinato, violรชncia grave, roubo ou qualquer outro delito cuja pena seja superior a cinco anos de prisรฃo.
O texto sofreu ainda uma mudanรงa semรขntica. Em vez de spyware, os sistemas passaram a ser denominados “softwares de vigilรขncia intrusiva”, distanciando-se do termo associado ร prรกtica de escutas ilegais.
O caso mais rumoroso foi o do software Pegasus, da empresa israelense NSO Group, usado para espionar polรญticos e jornalistas em mais de 20 paรญses da Europa e de outras regiรตes do mundo.
Se a lei entrar em vigor com esse dispositivo, os paรญses poderรฃo usar usar softwares de spyware para espionar quaisquer jornalistas em seus territรณrios, incluindo profissionais estrangeiros que trabalhem nesses paรญses como correspondentes internacionais, ainda que as leis de seus prรณprios paรญses proรญbam a prรกtica.
Embora em tese a espionagem amparada por lei esteja restrita a casos criminais sob investigaรงรฃo, nรฃo hรก garantias de que comunicaรงรตes dos jornalistas sobre outros assuntos, inclusive de ordem pessoal, nรฃo sejam vistas, jรก que os softwares dรฃo acesso pleno ao telefone ou computador.
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Associaรงรตes de jornalistas contra spyware
Quando o jornal Politico revelou que a Franรงa estava pedindo a mudanรงa, em maio, organizaรงรตes e veรญculos jornalรญsticos reagiram, apontando o risco para a liberdade de imprensa e para a seguranรงa de profissionais de mรญdia e de suas fontes.
Outra preocupaรงรฃo รฉ a possibilidade de governos autoritรกrios usarem spyware para perseguir jornalistas crรญticos, situaรงรฃo que nรฃo รฉ incomum na Europa.
A mudanรงa de rumos foi decidida em uma reuniรฃo fechada do Conselho da UE, em Bruxelas, com a presenรงa de representantes dos 27 paรญses que fazem parte do bloco.
Alรฉm da Franรงa, Alemanha, Holanda, Repรบblica Checa, Luxemburgo e Grรฉcia tambรฉm se colocaram a favor do uso de spyware para monitorar conversas de jornalistas, segundo a coalizรฃo de jornalismo investigativo Investigate Europe.
Em uma anรกlise sobre a decisรฃo, a mudanรงa no projeto de lei original foi chamada pela Investigative Europe de “cheque em branco para espionar jornalistas”.
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Dois dias antes da reuniรฃo desta quarta-feira, 61 organizaรงรตes, incluindo a Direitos Digitais Europeus (EDRi), a Federaรงรฃo Europeia de Jornalistas (EFJ), a Repรณrteres Sem Fronteiras (RSF) e vรกrios grupos de direitos humanos publicaram uma carta aberta pedindo ร Comissรฃo Europeia para nรฃo aprovar a mudanรงa, sem sucesso.
โSegundo a jurisprudรชncia [do Tribunal de Justiรงa da Uniรฃo Europeia], sรณ a criminalidade grave รฉ suscetรญvel de justificar uma grave ingerรชncia nos direitos fundamentais do indivรญduo. Quando se trata de jornalistas e profissionais de mรญdia, o limite deve ser maior devido ao papel crucial que desempenham como defensores das nossas democraciasโ, afirma a carta.
O texto critica o novo parรกgrafo que libera o uso de spyware sob o argumento de proteรงรฃo ร seguranรงa nacional, afirmando que ele transforma as salvaguardas que faziam parte do projeto original em “uma casca vazia”.
Com esta nova disposiรงรฃo, o Conselho nรฃo sรณ enfraquece as salvaguardas contra a instalaรงรฃo de spyware, como tambรฉm incentiva fortemente a sua utilizaรงรฃo com base exclusivamente no critรฉrio dos Estados-membros.
Jornalista espionado fala dos riscos
A carta traz um depoimento contundente do jornalista hรบngaro Szabolcs Panyi, descrevendo sua experiรชncia pessoal como alvo do spyware Pegsaus.
โA anรกlise tรฉcnica forense do meu telefone mostrou que o Pegasus estava em execuรงรฃo no meu dispositivo hรก sete meses. A vigilรขncia impediu meu direito de proteger minhas fontes. Sou jornalista investigativo que depende fortemente de informaรงรตes de denunciantes.
Em ambientes polรญticos cada vez mais repressivos, como na Hungria, onde a mรญdia estรก sob controle e pressรฃo do governo, denunciantes e vazamentos sรฃo a รบnica maneira que resta para os jornalistas investigativos descobrirem a verdade. ร exatamente por isso que, sob o pretexto de um vago e falso raciocรญnio de seguranรงa nacional, a vigilรขncia รฉ usada contra jornalistas”.
O texto aponta tambรฉm inconsistรชncia das mudanรงas em relaรงรฃo ร jurisprudรชncia existente:
Incluir a exceรงรฃo โseguranรงa nacionalโ sem salvaguardas dos direitos fundamentais negligencia a importante jurisprudรชncia do Tribunal de Justiรงa da Uniรฃo Europeia (TJUE).
O Tribunal deixou claro que o mero objetivo de salvaguardar a seguranรงa nacional nรฃo pode tornar o direito da UE inaplicรกvel e nรฃo isenta os Estados-Membros das suas obrigaรงรตes de respeitar o Estado de direito.
A carta insta o Conselho Europeu a rever a decisรฃo e construir uma posiรงรฃo sรณlida contra a vigilรขncia de jornalistas.
O projeto de lei ainda estรก tramitando. Ele deverรก ser aprovado primeiro no Conselho e depois votado no Parlamento Europeu.
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