A 31a Conferรชncia do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, realizada este ano em Santiago, capital do Chile, coincidiu com uma catรกstrofe na Amรฉrica do Sul que colocou ร prova o tema que a Unesco propรดs que 2,5 mil jornalistas, defensores da imprensa livre e outros discutissem: jornalismo e liberdade de expressรฃo no contexto da crise ambiental global.
Na semana passada, o estado do Rio Grande do Sul foi atingido pela maior enchente jรก registrada em sua histรณria. Em algumas regiรตes, o volume de chuva previsto para cinco meses caiu em apenas 15 dias. Atรฉ o momento, pelo menos 100 pessoas morreram, cidades inteiras estรฃo debaixo d’รกgua e atรฉ a capital, Porto Alegre, segue inundada.
Essa tragรฉdia รฉ mais uma na regiรฃo a evidenciar a importรขncia do jornalismo ao informar sobre eventos climรกticos extremos e preparaรงรฃo, recuperaรงรฃo e adaptaรงรฃo para impactos climรกticos.
Jornalismo e a crise ambiental global
Esse รฉ โo grande tema que o jornalismo tem que cobrirโ, disse a jornalista peruana Veronica Goyzueta ร LatAm Journalism Review (LJR) durante a conferรชncia, cujo tema foi โUma imprensa para o planeta: o jornalismo diante da crise ambientalโ.
Goyzueta รฉ co-fundadora da plataforma amazรดnica de jornalismo Sumaรบma e foi uma das painelistas na sessรฃo โSalvar o planeta e proteger a democracia: a mesma lutaโ, no dia 3 de maio.
โร fundamental que a imprensa discuta a cobertura ambiental, porque รฉ um assunto que tem que entrar cada vez mais nas redaรงรตes e de forma transversal, nรฃo como uma seรงรฃo do jornal, mas como um assunto que passe por todas as รกreasโ, disse ela.
โร algo que tem a ver com a vida das pessoas, e nรณs realmente precisamos entender o que estรก acontecendo com o clima, que nรฃo รฉ mais uma crise e uma mudanรงa climรกtica, mas uma emergรชncia climรกticaโ, afirmou.
โEventos como esse para discutir isso sรฃo fundamentais. ร uma discussรฃo que eu nem diria que estรก atrasada porque รฉ importante, mas tem que ser constante.โ
Entre os debates realizados durante a conferรชncia, tratou-se de desinformaรงรฃo climรกtica, meios comunitรกrios e vozes indรญgenas na cobertura ambiental, mecanismos de acesso ร informaรงรฃo ambiental, e desafios enfrentados por jornalistas ao cobrir questรตes climรกticas na Amรฉrica Latina, entre outros.
Tambรฉm foram discutidas ameaรงas ร liberdade de imprensa e de expressรฃo como um todo, como a crise de sustentabilidade do jornalismo, novas tecnologias de vigilรขncia e espionagem usadas contra jornalistas na Amรฉrica Latina e a violรชncia digital e fรญsica contra mulheres jornalistas.
Pesquisa da Unesco expรตe a dimensรฃo dos riscos
Durante a conferรชncia, a Unesco lanรงou o estudo โA imprensa e o planeta em perigoโ, que examina os ataques contra jornalistas que cobrem questรตes ambientais.
O estudo se baseia em uma pesquisa realizada pela Unesco e pela Federaรงรฃo Internacional de Jornalistas (FIP) com 905 jornalistas de 129 paรญses. Mais de 70% deles disseram ter sido alvo de ataques, ameaรงas ou pressรตes ao exercerem seu ofรญcio. Desses, 41% foram vรญtimas de ataques fรญsicos.
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A jornalista brasileira Catarina Barbosa destacou os riscos especรญficos que as mulheres jornalistas que cobrem a Amazรดnia enfrentam. Ela representou a Associaรงรฃo Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), da qual รฉ diretora, na sessรฃo โO que o jornalismo necessita para ajudar a salvar a Amazรดnia?โ, no dia 4 de maio.
โHรก trabalhos incrรญveis sendo desenvolvidos por mulheres, mas existem algumas particularidades. Por exemplo, a forma como vamos vestidas a campo รฉ uma preocupaรงรฃo que os homens geralmente nรฃo tรชm quando vรฃo a campo. ร comum fazer dupla com algum repรณrter e ele estar totalmente despreocupadoโ, disse ela ร LJR.
โAs mulheres em trabalho de campo correm o risco de ser violentadas, principalmente se nรฃo tiverem um protocolo de seguranรงa.
ร muito importante que a gente fale [sobre isso], e vรกrias organizaรงรตes tรชm discutido um protocolo que consiga garantir o mรญnimo para que a jornalista possa ir a campo com seguranรงa.โ
Caso Dom e Bruno mudou prรกticas no jornalismo ambiental
Barbosa tambรฉm apontou que as mortes do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britรขnico Dom Phillips, assassinados em junho de 2022 na Amazรดnia e lembrados em vรกrios debates durante a conferรชncia, sรฃo evidรชncia de que o perigo enfrentado por jornalistas ao cobrir a regiรฃo โรฉ realโ.
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As mortes de Pereira e Phillips tiveram um grande impacto sobre jornalistas que trabalham na Amazรดnia. A jornalista brasileira Karla Mendes, repรณrter da Mongabay, falou ร LJR sobre como mudou sua maneira de trabalhar depois disso.
โEu me lembrei de muitas situaรงรตes em que me coloquei em risco para fazer uma reportagem sem realmente perceber o quanto aquilo era arriscado. Quando eles desapareceram, nรฃo consegui dormir bem, pois pensei que aquela situaรงรฃo poderia ter acontecido com qualquer pessoaโ, disse Mendes.
โDesde entรฃo, tenho feito avaliaรงรตes de risco muito rigorosas antes de ir a campo. Minha primeira viagem ร Amazรดnia depois dessa tragรฉdia foi em agosto de 2023.
E, pela primeira vez, levei um comunicador via satรฉlite. Eu disse: โnรฃo vou sem eleโ, porque ele funciona offline e posso enviar mensagens offline com minha localizaรงรฃo para meus editores e pessoas da minha equipe.โ
Jornalismo investigativo ambiental precisa ser colaborativo
Entre as sessรตes de que Mendes participou na conferรชncia estavam o workshop โInvestigaรงรตes baseadas em dados na Floresta Amazรดnica: contribuiรงรตes do jornalismo para a governanรงa na regiรฃoโ, que ela ministrou com Bram Ebus, jornalista holandรชs baseado na Colรดmbia, no dia 3 de maio.
Ebus รฉ coordenador da Amazon Underworld, uma investigaรงรฃo transfronteiriรงa sobre o crime organizado na Amazรดnia. Ele falou ร LJR sobre a importรขncia da colaboraรงรฃo entre jornalistas para investigar os atores por trรกs da destruiรงรฃo da floresta e da crise ambiental e climรกtica.
โQuando se trata de jornalismo que investiga crimes ambientais, รฉ muito importante formar uma equipe, pois os criminosos estรฃo fazendo o mesmo. Quando eles trabalham alรฉm das fronteiras, nรณs, como jornalistas, tambรฉm devemos trabalhar alรฉm das fronteiras e formar alianรงas jornalรญsticas para lidar com essas questรตes transfronteiriรงas e entender melhor as cadeias de suprimento de ouro, cocaรญna e madeira, e procurar os responsรกveis internacionaisโ, disse Ebus.
Segundo a Unesco, a conferรชncia realizada em Santiago โรฉ o inรญcio de um roteiro para enfrentar a violรชncia contra jornalistas que fazem reportagens sobre questรตes ambientais e contra outras vozes crรญticas, bem como para enfrentar o crescente problema da desinformaรงรฃo em relaรงรฃo ร s mudanรงas climรกticasโ.
A agรชncia da ONU disse que coletarรก as ideias debatidas na conferรชncia e em breve publicarรก medidas concretas nesse sentido, com vistas ร Conferรชncia das Naรงรตes Unidas sobre as Mudanรงas Climรกticas de 2025. Tambรฉm conhecida como COP30, o evento serรก realizado em Belรฉm, no Parรก, em novembro do prรณximo ano.
Sobre a autora
Carolina de Assis รฉ uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). ร mestra em Estudos da Mulher e de Gรชnero pelo programa GEMMA โ Universitร di Bologna (Itรกlia) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gรชnero e Nรบmero e se interessa especialmente por iniciativas jornalรญsticas que promovam os direitos humanos e a justiรงa de gรชnero.
Esta matรฉria foi publicada originalmente na LatAm Journalism Review do Knight Center para o Jornalismo nas Amรฉricas e รฉ republicada aqui sob licenรงa Creative Commons. Os direitos sรฃo reservados ร autora.
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