Um novo relatório divulgado nesta sexta-feira (16) expõe uma estratégia de ataques diretos russos contra a imprensa na Ucrânia, por meio de bombardeios a hotéis onde os jornalistas se hospedam para cobrir a guerra.
Segundo o documento, produzido pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em parceria com a ONG ucraniana Truth Hounds, os ataques da Rússia seguem um padrão claro e têm um alvo específico: a imprensa independente.
O relatório classifica essas ações como crimes de guerra e violações do direito internacional humanitário.
Ataques russos contra hotéis civis: crimes de guerra documentados
Esses hotéis, longe de serem bases militares, eram — de acordo com a investigação — o último reduto seguro para quem tentava informar o mundo sobre a realidade da guerra.
De acordo com o relatório Last check-in: The Russian strikes on Ukrainian hotels silencing the press, 31 ataques russos atingiram 25 hotéis na Ucrânia entre fevereiro de 2022 e março de 2025.
Esses hotéis, longe de serem bases militares, eram — de acordo com a investigação — o último reduto seguro para quem tentava informar o mundo sobre a realidade da guerra.
Apenas um deles estava em uso militar. Os demais abrigavam civis — entre eles jornalistas e profissionais de ajuda humanitária.
A maioria dos bombardeios — 27 de 31 — ocorreu em regiões próximas à linha de frente, como Kharkiv, Donetsk, Odessa, Dnipro e Kyiv.
Vinte e três desses ataques aconteceram à noite, entre 20h e 8h, quando os hotéis estavam mais ocupados. Em 15 casos, foram usados mísseis Iskander, conhecidos por sua precisão.
“Os ataques russos contra hotéis que hospedam jornalistas na Ucrânia não são acidentais nem aleatórios”, afirma Pauline Maufrais, responsável regional da RSF.
“Esses ataques fazem parte de uma estratégia para semear o terror e reduzir a cobertura da guerra.”
Roman Koval, chefe de pesquisa da Truth Hounds, acrescenta que os bombardeios seguem uma lógica própria, distinta de outros ataques contra infraestrutura civil, e que os alvos frequentemente incluem jornalistas e profissionais humanitários.
Para ele, o objetivo não é apenas destruir os prédios, “mas intimidar ou ferir quem está dentro”.
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O caso Ryan Evans: uma morte e uma mentira
Entre os episódios descritos no relatório está o ataque ao hotel Sapphire, em Kramatorsk, em 24 de agosto de 2024.
O conselheiro de segurança da agência Reuters, Ryan Evans, foi morto no local. Dois colegas — o americano Dan Peleschuk e o ucraniano Ivan Liubysh-Kyrdey — ficaram feridos.
De acordo com o documento, não havia militares presentes no hotel.
Apesar disso, Moscou afirmou que Evans era um ex-agente do MI6 — acusação desmentida por sua família e pela Reuters.
A investigação aponta que o general russo Alexei Kim foi formalmente acusado pela Ucrânia de ordenar o ataque a esse alvo civil.
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Jornalistas sob ataque na Ucrânia: medo, trauma e adaptação
O relatório também detalha como os ataques mudaram a rotina dos jornalistas em campo. Dados levantados junto a profissionais ucranianos e estrangeiros mostram que:
- 64% dos jornalistas ucranianos e 43% dos estrangeiros passaram a evitar hotéis próximos ao front;
- 13% reduziram ou suspenderam coberturas em regiões críticas;
- 44% relataram estresse ou trauma psicológico após vivenciar bombardeios.
Muitos passaram a circular sem sinais de identificação como “press”, usam veículos neutros e mantêm a geolocalização desativada — tudo para dificultar o rastreamento.
Desinformação como tática paralela russa justificando ataques a jornalistas
Para justificar os ataques, o relatório aponta que a Rússia recorre sistematicamente à desinformação, alegando que os hotéis estariam sendo usados como bases militares.
Essa narrativa é repetida por canais oficiais e perfis anônimos em redes como o Telegram.
No entanto, a investigação confirma que apenas um dos 25 hotéis tinha relação com o exército ucraniano. Os demais eram ocupados por civis.
Negociações estagnadas, guerra contra a informação ativa
A menção a uma estratégia deliberada contra jornalistas, como mostra o relatório, ganha ainda mais peso diante da ausência de avanços diplomáticos.
Nesta sexta-feira, uma rodada de conversas de paz entre Rússia e Ucrânia foi realizada na Turquia — sem avanços significativos.
Nesse cenário de impasse, os ataques à imprensa se intensificaram, configurando, segundo os autores, uma estratégia militar para controlar o fluxo de informações.
Atacar jornalistas, afirma o relatório, não é apenas ferir indivíduos — é tentar eliminar a presença da verdade no campo de batalha.
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Recomendações do relatório: justiça e proteção
A RSF e a Truth Hounds propõem uma série de medidas para autoridades e organizações internacionais:
- Priorizar os ataques russos a jornalistas na Ucrânia como crimes de guerra em tribunais nacionais e internacionais;
- Incentivar que países como o Reino Unido processem responsáveis, especialmente no caso de Ryan Evans;
- Fortalecer os protocolos de segurança e apoio psicológico para profissionais em zonas de conflito;
- Desenvolver estratégias eficazes de combate à desinformação pró-Kremlin.
As organizações alertam: proteger jornalistas é proteger o direito de todos à informação — e esse direito nunca esteve tão ameaçado.
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